23.4.08

Impérios de Vento - 1ª Parte: Chuva - Um e Meio

O pai trouxera a notícia: a fábrica ia fechar. Em apenas algumas semanas passaram do bairro modesto mas limpo em que sempre tinham vivido para uma das piores partes da cidade. Depois o pai adoecera e o irmão mais velho fora morto numa rixa de rua. A mãe ainda durara mais alguns anos, morrera tinha ele dezassete. Desde então tomara conta de si, melhor ou pior: agora que podia contabilizar todos esses anos da sua vida inclinava-se para a segunda hipótese. Cometera demasiados erros, acumulara demasiado ódio e agora parecia tarde demais para enveredar por outro caminho. Hellmut Hauser suspirou e decidiu afastar todos aqueles pensamentos da sua cabeça.
- Olá! O meu nome é MacArthur Parker. Também o raptaram? – a presença do estranho surpreendera Hellmut, não o sentira antes. Raptado, dissera ele? O que é que isso tinha a ver com... Hellmut Hauser começou a pensar, coisa que não parecia ter sucedido nos últimos tempos. Recordava-se de ter saído do bar de Arnie, mas depois disso era o vazio total. Tentou levantar-se mas não conseguiu. Só então se apercebeu da ausência de sensações, pelo menos das que estava habituado a sentir. Tudo o que parecia rodeá-lo era muito estranho e o desconhecido sempre lhe causara medo.
- A mim costuma causar-me perplexidade. – Hellmut sentiu-se desorientado. Será que pensara em voz alta? Quem seria o estranho?
- Eu também me sinto um pouco desorientado embora esteja por aqui há mais tempo que você. Já lhe tinha dito o meu nome, MacArthur Parker, vadio inveterado da Terra e das Colónias. À primeira pergunta que fez (ou pensou) não lhe sei responder, também me encontro no mesmo limbo que você. Ainda não me disse o seu nome.
Hellmut penetrou na longa espiral do pânico e tentou gritar.
- Cale-se homem, você não está a dizer coisa com coisa e está a pôr-me doido também! – Hellmut já não o escutou. Antes de perder a consciência MacArthur Parker ouviu a voz que já lhe era familiar.
"Teste 32 abortado. Iniciar sequência de..."

O seu estado consciente era constituído por uma série de janelas sem qualquer ligação. Algumas das vezes tinha visão e audição normais, noutras vagueava num limbo simultaneamente negro e luminoso. Entre a visão do que parecia ser um quarto asséptico (ainda não se movimentava o suficiente para confirmar essa impressão) e a escuridão pejada de luz estava o seu mundo. A estranha presença balbuciante surgira numa dessas ocasiões, um ser confuso e inseguro que lhe lançara torrentes desconexas de objectos sem valor semântico para o interior do seu cérebro. A sua calma proverbial não o abandonara mas sentia-se modificado a um nível muito básico. Porque razão estaria a pensar daquele modo? Nas raízes dos seus raciocínios qualquer coisa se modificara insinuosa e suavemente. Só agora se denunciara através da estrutura dos seus pensamentos e mesmo assim não percebera nada do que lhe acontecera. Estaria louco? Um clarão de luz parou-lhe os pensamentos e por alguns instantes viu o quarto iluminado pela luz branca e fria de hospital. Ou de laboratório, pensou.
"Desliga outra vez, estes padrões não estão..."

Ruído branco. Todo o espectro do seu pensamento se subjugara à terrível interferência. Quando julgava que o seu cérebro iria estoirar o ruído cessou. Era uma cena calma e bucólica a que só faltava um pastor com ovelhas para dar o tom anacrónico final à paisagem campestre que divisava. Verde até perder de vista!
Sentiu-se em movimento; estava numa cadeira de rodas! Olhou para o pequeno maciço de árvores à distância de algumas dezenas de metros de si. Trinta vírgula trinta e quatro, para ser mais preciso. Quando o maciço surgiu ampliado no seu campo de visão Hellmut Hauser iniciou o processo que o levaria ao pânico total.
- Acalme-se homem, eu também estou surpreendido com o que fez mas não é necessário entrar em pânico! Ainda o desligam e o levam novamente para a revisão.
- Quem é você?
- Pela terceira vez: o meu nome é MacArthur Parker e estou aqui para o ajudar. Quer dizer-me agora o seu nome?
- Hell... Hellmut Hauser. – balbuciou.
- Pois bem, Hellmut, há certas coisas que é necessário que eu lhe conte. Sabe, o meu processo foi menos chocante para mim que o seu e já me permitiram saber de certas coisas. Acalme-se e eu conto-lhe, mas prepare-se desde já para alguns grandes choques.

Hellmut Hauser manteve-se calado durante muito tempo. Calado era uma força de expressão, agora que não possuía corpo. Os seus pensamentos só a muito custo eram só seus; toda aquela torrente de pequenas coisas de que é composto o raciocínio era partilhada com o outro. "Não pense em mim desse modo, não somos dois seres. Nem um, vendo bem..."
Hauser tentou pensar só para si, contabilizar as perdas e os ganhos, se é que havia alguns. Afinal aquela aposta fora ganha, no fim acabara por morrer mesmo, mas de uma forma muito estranha. Toda a sua existência se resumia a um reduzido e extremamente complexo circuito integrado. Não era um circuito vulgar, arseniato de gálio e silício desenhando linhas sinuosas e superfícies com elaborados desenhos geométricos nelas impressos. Era uma coisa superior, com partes que se podiam considerar orgânicas se as olhássemos ao nível do material de que eram compostas, e interfaces não visíveis entre o cérebro do seu hospedeiro e o mais íntimo do que restava de si. Via tudo o que era agora até ao mais insignificante pormenor. Perdera muitas das coisas que a vida tinha de bom mas nunca mais teria os terríveis pesadelos que o atormentavam, nem faria aquelas coisas novamente. Perdas e ganhos... Podia realizar coisas que nem nas sessões mais loucas no thinkbar imaginara. Perdera a visão, a audição, todos os outros sentidos e sensações, e ganhara um único sentido, sinérgico de todos os anteriores. É claro que podia utilizar os sentidos de MacArthur Parker individualmente e experimentar as suas sensações, mas também era verdade que ele podia bloqueá-lo e confundi-lo. Era uma espécie de anjo da guarda. "Nunca fui santo", ripostou MacArthur dentro de si. Perdas ou ganhos?

Parker apoiou-se à bengala que ainda utilizava por se sentir fraco, uma fraqueza interior que Hellmut ajudava a ultrapassar.
- É a tua vez, Mac.
- Bispo, C5 para E7.
- Quer dizer que ela não era mais que um isco para te pescar?
- Sim, – confirmou MacArthur – um isco muito atraente. Não é ela que vem ali?
Ali era uma grande distância. MacArthur Parker não obrigou nem pediu a Hellmut Hauser para ampliar a imagem, isso não era necessário. Sue DeLonghi apenas apareceu num grande plano a Parker. Não deixou de a ver ao longe, a imagem processada por Hellmut era uma espécie de segundo plano, um processo subjacente à imagem real.
- Um belo isco. – sim, Hellmut nunca a tinha visto em pessoa, apenas as imagens e recordações que Mac guardava da viagem a bordo do Eastbourn – Porque é que nos escolheram a nós, Mac?
- Ouvi qualquer coisa sobre o rastreio de mutações. Ao que parece não tentam detectar só degenerescências, analisam muitas outras coisas. Quando quiseram alguém com as nossas características só lhes foi necessário consultar a base de dados do centro de rastreio. Fomos escolhidos quase ao acaso, por isso não te tenhas em grande conta. Não és nenhum génio, Hellmut.
O isco aproximara-se e saudara-os com um aceno. Haviam sido muito subtis na forma como o tinham caçado. Com Hellmut fora tudo um pouco mais rude. Afinal eles não tinham precisado do corpo dele...
- Olá Mac, olá Hellmut. Estão mais fortes hoje?
Nem um nem outro lhe responderam: Hellmut porque não podia, Mac porque não o quis fazer.
- Já nos pode contar o que pretendem de nós? – a pergunta fora feita pelos dois.
- Oh, Mac!... Porque me trata tão friamente quando até já fomos amantes? – o granizo que principiou a cair interrompeu a conversa na altura ideal. Mac já pensava em como lhe acertar com a bengala de plástico.
Caminharam os três para dentro, Sue auxiliando Mac, fugindo às pedras de gelo que os fustigavam sem cessar.
- Que dia é hoje? – perguntou Mac.
- Um dia qualquer de Agosto. – respondeu Sue enquanto o sentava no sofá junto à lareira. Até o tempo lhes haviam roubado, pensou Hellmut. Uma coisa que era mais que calor confortou todo o seu... o seu... – o que era ele agora? – toda a sua essência. Sim, essência era um bom termo. Devia ser a sua essência a única coisa que repousava agora no diminuto chip alojado no cérebro de Parker.
- Torre, D1 para D5, xeque-mate! Perdeste Hellmut, deves-me uma cerveja.

Não lhes tinham contado nada. Não conheciam os objectivos deles, fossem eles quem fossem, embora a MacArthur sempre lhe tivesse parecido tudo muito oficial. Provavelmente a Administração estaria por trás de tudo aquilo. Mac entrou na pequena cápsula para se sujeitarem a mais um teste. Desde a sua recuperação (física a dele, psicológica a de Hellmut), tinham sido sujeitos a tantos e tão variados testes que Mac já lhes perdera a conta.
- O que pensas que nos vão fazer agora?
- Não faço ideia mas esta cápsula sugere um teste de velocidade, ou pressão, ou...

Nunca dera demasiada atenção ao assunto: para ele, se se mexia, estava vivo. Só as novas condições da sua existência o levaram a rever os seus conceitos de "ser vivo" e a questionar-se sobre o verdadeiro significado da expressão "estar vivo".
Hellmut Hauser não tinha dúvidas de que estava vivo, no entanto não se conseguia incluir em nenhum grupo de seres viventes. Era uma entidade viva mas não possuía muitas das características que nos habituámos a relacionar com a vida. Ou então era uma simulação muito bem feita... Hellmut afastou a ideia, estava a ficar paranóico.
Ainda não se conseguia imaginar como um conjunto de circuitos alojado junto ao cérebro de MacArthur Parker e isso continuava a confundi-lo. Continuava a ver-se como uma pessoa, com pernas e braços e cabeça e cérebro... Existem coisas que podem ser remediadas e em que se atinge um novo estado de equilíbrio, mas o que lhe acontecera estava para lá de qualquer remédio.

Debilmente tentou fazer-se ouvir. Quando o silêncio avassalador ocultou a sua voz ele desfez-se em desespero. Procurou em vão a saída do labirinto, mas a cada tentativa ficava mais enleado na trama de finos fios de nada. O ar diluiu-se nas sombras e ele sentiu os pulmões vazios pedirem por ele. Quando já nada esperava senão o vazio calmo da morte todo o cenário se estilhaçou como um vidro atingido por uma pedra. Ouviu o seu grito e levantou-se de um salto: estava ensopado em suor e tremia de medo. Abriu a diminuta janela de par em par e olhou a pequena baía mergulhada na luz cinzenta do início da madrugada. As casas amontoavam-se pela encosta quase até ao mar e o pequeno porto já fervilhava de actividade apesar da hora matinal.
Deixou que o ar fresco o acariciasse e levasse com ele os últimos vestígios daquele sonho mau. Não existe efeito sem causa, pensou. Algo o ameaçava, qualquer coisa mais perigosa do que tudo o que tinha enfrentado até agora. Havia gente que não gostava dele. Estava na hora de abandonar a pacata cidade de Kacira e procurar outro refúgio.

8.4.08

Impérios de Vento - 1ª Parte: Chuva - Fracos Vestígios de Azul

Olhou para a sarjeta, indiferente às grossas gotas da chuva que caía. Uma pequena torrente de água suja era engolida com dificuldade crescente pelo escoamento. Reparou que tinha os pés dentro da poça de água mas isso não tinha grande importância, todo ele estava igualmente encharcado. Olhou para o letreiro de néon vermelho: "O Paraíso Oculto, Casa de Lazer". Uma pequena pensão com serviço de quartos integral, pensou. Raio de eufemismo para designar um simples bordel.
- O nome é Hauser. Hellmut Hauser, com dois "l".
- Sim, está aqui um recado para si, senhor Hauser.
Agradeceu à recepcionista quando ela lhe entregou um pequeno envelope branco e saiu para a chuva do princípio da noite. Dirigiu-se para o modesto snack-bar no outro lado da rua: estava a apetecer-lhe beber um café bem quente e comer qualquer coisa.
O café sabia mal, mas por aquele dinheiro dificilmente encontraria melhor. Deu para si a olhar para o sobrescrito imaculadamente branco, rodeado pelo vapor intenso do café. Resolveu abri-lo ali mesmo, era um sítio tão bom como qualquer outro.
Um cheque de dez mil, um nome e uma morada. Suspirou resignado e contou a si mesmo a mentira de que aquela seria a última vez. Pagou a refeição e saiu para a noite húmida. Continuava encharcado até aos ossos e a chuva que teimava em cair ensopava-o ainda mais. Iria resolver tudo nessa noite.

MacArthur Parker sempre fora teimoso e não era agora que ia mudar. Apostou novamente no 36 com a calma que nunca o abandonava e fitou a pequena bola durante toda a sua evolução; a gravidade de 0.7g tornava estranho o seu movimento. Quando a pequena esfera se imobilizou, levantou-se e dirigiu-se em passos decididos para a saída do casino do paquete Eastbourn. O 36 teimara em não sair e aquele fora o seu último dinheiro.
- Sinto muito mas o seu crédito esgotou-se – disse a porta – Poderá resolver a sua situação no posto de atendimento deste piso.
- E resolver como? – disse MacArthur Parker para ninguém. Por um infeliz acaso os sistemas de cobrança da Eastbourn tinham tentado debitar a diária do seu camarote antes de ele retirar as suas coisas. Agora tinha a roupa amarrotada que trazia vestida e três vírgula cinco novos dólares em plástico no fundo do bolso. Resolveu deambular por ali, pensando num modo de escapar ao trabalho compulsivo ou de não ser atirado borda fora se fosse considerado não rentável. Nenhuma das duas hipóteses lhe dava motivos para se sentir feliz.
Nos seus passos sem destino acabou num dos muitos miradouros que a grande nave possuía. Olhou para as miríades de pontos de luz e para os novelos de gás luminoso no seu fundo de veludo negro. Como o seu futuro imediato, pensou.
- Eu diria que você está perante um grande dilema, ou será que me enganei?
MacArthur olhou para o local de onde a voz viera e sorriu quando a viu.
- A minha maior preocupação é que este grande dilema não é puramente filosófico. Diria mesmo que é rasteiramente egocêntrico.
- Do tipo financeiro? Ou será antes sentimental?
- Antes fosse...
- Gostava de o poder ajudar.
- E posso perguntar porquê?
- Pode, mas nem eu tenho a certeza da resposta. Acho que de uma forma muito singela tenho uma alma excessivamente filantrópica para as minhas posses. – gracejou ela num tom afectado – Tem algum dinheiro?
- Três vírgula cinco.
- Mas isso nem dá para abrir a porta de um camarote! – disse ela admirada, com os olhos grandes de um castanho profundo muito abertos.
- Eu sei.

Vento frio, vento frio, sopra com força e leva de mim o odor a maldição!, pensou ele. Sentia-se como se estivesse no poço mais fundo da mina mais profunda à superfície da Terra. Deus não existe, meditou, porque se existisse já há muito o teria destruído. A destruição total, onde até o mais humilde dos seus átomos seria aniquilado para sempre. A energia difusa que restaria da execução espalhar-se-ia pelo Universo, e de tão difusa nada de mal poderia fazer a ninguém.
Entrou no thinkbar para esquecer. Procurou uma cabina vazia, introduziu as moedas necessárias e programou raiva. A raiva total, contra tudo, contra todos. Deixou-se afundar no divã fofo de couro sintético e diluiu-se no negro da sua cor.

Amarelo! Amarelo de Sol, radiante, se lhe afigurava agora o que antes lhe parecera negro. Recuperara as suas roupas e todas as pequenas bugigangas que as pessoas sempre trazem consigo para tentar colar os pedaços das suas vidas.
Voltou-se para o lado esquerdo e fitou o rosto do seu anjo da guarda: Sue DeLonghi, operadora de heatsource em trânsito para outra vida. Acabada a sua comissão num planeta exterior, voltava agora ao ninho um pouco mais rica e alguns anos mais velha. A sua filantropia chegara ao ponto de o receber no seu camarote e de lhe dar o seu corpo. MacArthur Parker sentia-se melhor na sua pele mas continuava sem dinheiro no bolso, inteiramente dependente do que não sabia ser um auxílio desinteressado ou um capricho passageiro.
Olhou o relógio mergulhado na penumbra e viu que era muito cedo. No cinzento das luzes veladas sobressaía a faixa luminosa colocada sobre a cama por Sue, com a sua frase estranha e enigmática:
"Já percorri céus azuis sem fé".
Fechou os olhos e tentou dormir.

A ressaca era terrível e imediata. Hellmut Hauser levantou-se com dificuldade do divã de couro e cambaleou para fora da cabina do thinkbar. Quando o ar fresco de mais uma manhã lhe invadiu os pulmões foi demais para ele: vomitou, apoiado na parede suja do prédio, tonto como se tivesse bebido duas garrafas de vodka seguidas. Exagerara na dose, sempre exagerara em tudo...
- Arnie, dá-me qualquer coisa para comer.
- Olha quem ele é! Não estavas dentro?
- Nunca lá estive! – disse indignado, com o Arnie Gordo suspenso pela gola da camisola.
- 'Tá bem, 'tá bem! Como não te víamos há uns tempos, pensámos que...
- Tu não pensas, Arnie, só serves comida. – tornou a sentar-se e tentou ficar calmo. Tinha os nervos em franja. Aquela sessão no thinkbar só tinha piorado as coisas em vez de as melhorar.
- Traz-me também café e um analgésico. – Arnie respondeu com um grunhido.
Já tinha tentado ir para longe, onde não conhecia ninguém, mas voltava sempre a acontecer. Ali pelo menos pagavam-lhe por isso. E os pesadelos constantes, quem lhos pagava? Tomou o comprimido que Arnie lhe trouxera e comeu.
O bar do Arnie Gordo não estava cheio, nem Hellmut se recordava de alguma vez o ter visto assim. Apesar de tudo eram bastantes os clientes presentes. Fitou-os um a um enquanto bebericava o resto do café. Não se podia dizer que a frequência fosse muito selecta mas naquela parte da cidade não se podia exigir melhor.
Os seus pensamentos foram cortados pelo alarme de tempestade que soou. Todos se levantaram e correram para a rua, direitos ao abrigo mais próximo. Todos se levantaram excepto Hellmut Hauser que continuou sentado a beber o seu café no bar do Arnie Gordo. Se a morte surgisse ele dá-la-ia por bem vinda. Lá fora ouvia-se o vento assobiar e as bátegas de água faziam o ruído de um mundo a desabar. O Arnie Gordo entrou encharcado na loja e fechou as portas com dificuldade.
- Hellmut, ainda estás aqui?
- E tu, porque é que voltaste?
- Esqueci-me de colocar os protectores nas montras, ainda no mês passado tive de substituir os vidros. – espreitou para a rua pelas frestas – Agora é tarde demais para voltar para o abrigo... – lamentou-se.
- Pois é. Tarde demais para tudo.
Lá fora mil dragões uivavam de dor e raiva, e rios nasciam das pedras e cascatas jorravam do topo dos prédios. Lá fora, muito perto, caiu uma descarga formidável e o solo pareceu dançar ao seu ritmo eléctrico. Dentro do bar do Arnie Gordo, na sala deserta, Hellmut Hauser olhava para a caneca vazia que ainda fumegava e Arnie havia fugido para a cave.
Todos os anos o clima piorava e a instabilidade ditava leis. Se não fossem as culturas protegidas e as fábricas de síntese há muito que teriam morrido de fome. Muitos anos se haviam passado desde a última Primavera calma e o Verão tinha morrido nos braços de um Inverno que espalhara o seu hálito terrível por todas as estações. Os investigadores tinham desistido há muito nas tentativas de fazer recuar o manto de instabilidade e de caos que se instalara em todo o planeta. Todas as equações e modelos haviam perecido na evidência de todos os dias, no granizo dos dias de Verão e no sol abrasador do Outono.
No bramido grave que penetrava a sala tudo se confundia numa amálgama terrível de sons de destruição. Hellmut apostou consigo próprio em como o edifício não resistiria à fúria da tempestade. Como ele desejava ganhar aquela aposta!

Tinha a sensação de que era terrivelmente tarde. Tentou virar-se e não conseguiu. Tentou abrir as pálpebras e elas não lhe obedeceram. Da escuridão surgiu o medo: não sentia quaisquer cordas a prendê-lo, no entanto não conseguia mover-se. Não conseguia sentir! O medo transformou-se em pânico que a pouco e pouco se extinguiu, impotente. Uma fria calma e as hipóteses mais absurdas acorreram ao cérebro de MacArthur Parker. Sentia-se bem vivo apesar de tudo, portanto não morrera. Teria sido manietado por alguém enquanto dormia no camarote de Sue? Aquela paralisia podia ser provocada por alguma droga que actuasse ao nível do sistema nervoso, mas porquê? Porque havia alguém de querer raptá-lo, ele que nunca fora importante em nada nem para ninguém?
As horas passaram iguais para MacArthur Parker, paralisado no corpo mas não na mente, separado do mundo exterior, sem sensações, mergulhado no casulo de nada em que o tinham envolvido.
Muito tempo depois sentiu o perfume, ténue, e uma sensação de calor precedeu a sensação do contacto com lençóis. Estava numa cama e alguém se debruçava sobre ele. Já conseguia ver!
- Olá Mac. – tentou falar mas não lhe saiu nada. Tentou dar um murro no rosto lindo de Sue DeLonghi mas o seu braço não lhe obedeceu. Não percebia o que lhe tinha acontecido mas algo de muito errado se passara consigo.

Ainda chovia, mas o dilúvio já terminara. Hellmut Hauser não esperara que Arnie saísse da cave onde se tinha refugiado. Saiu para a rua e foi caminhando em passos lentos pelo quadro de desolação. Mais uma vez perdera.
A rua estava juncada de escombros, pedaços dos prédios que se haviam destacado destes, e vidros e lama que tinha vindo com a chuva. Uma calma de morte tinha caído sobre a cidade. Hellmut Hauser não viu a pedra que lhe acertou nem a mão que a tinha lançado. Alguns segundos depois chegou uma ambulância. Ignorou os outros feridos e os cadáveres dos mais azarados e recolheu o corpo inerte de Hellmut Hauser. Depois levantou voo e desapareceu no céu plúmbeo com as turbinas no máximo do esforço. Ninguém prestou muita atenção ao pequeno episódio.

(continua)

17.2.06

Toda A Mente É Danada (8)

A mente de Elder venceu a imobilidade de Vincent e o dedo deste premiu o gatilho. A película transparente transformou-se numa poalha de cristal que se espalhou pelo chão da sala e a bala atravessou os delicados circuitos neurotrónicos, destroçando as ligações cimentadas ao longo de anos de raciocínio intenso. Ouviu-se um grito de dor e a voz da máquina gritou o seu nome. Vincent caiu no chão mas Elder sentia-o livre, a actividade do seu cérebro recomeçara do nada anterior.
- Não precisava de ter sido assim... – a voz da máquina era fraca, mas ainda se notava o seu tom doce e calmo – Podíamos ter resolvido tu...do se... me deix...assem fa...lar... com ele. Agora... libertaram-no...
A voz extinguiu-se e os rastos de luz no complexo neurotrónico tornaram-se esparsos e fracos, caminhando rapidamente para a extinção. Vincent estava de joelhos a observar a cena e eu aproximei-me e ajudei-o a pôr de pé. Estava ofegante como se acabasse de fazer um esforço violento.
- De repente desapareceu tudo... Não foi como perder os sentidos, foi algo de mais radical e provocou um buraco na minha memória. Foi como se, por momentos, tivesse deixado de existir. – olhou para a máquina moribunda – Estão a tornar-se um hábito para mim, estes tiros no escuro, mas pelo menos agora acertei em quem devia, apesar de ter sido auxiliado.
- Sabias que no século XX os computadores eram construídos com um dispositivo que se chamava transistor? – Vincent olhou-me e sorriu. Eu insisti:
- E que não possuíam qualquer capacidade de raciocínio? – caminhámos lentamente lado a lado e saímos da sala. Um cheiro enjoativo de coisa queimada seguiu-nos quando atravessámos a porta.

- É escusado... Escapou completamente ao nosso controlo e divaga agora por onde só Deus sabe.
- Raios, Heigelt! Explique-me o que aconteceu para ver se percebo. Essas tiradas filosóficas não me dizem absolutamente nada! – o General Hastings estava apoplético. Heigelt respondeu-lhe com a calma de quem se sabe derrotado.
- General, nós só montámos um cenário que possuía fortes possibilidades de nos conduzir à revelação dos códigos, mas o cérebro de Doneghan (ou deverei chamar-lhe Pramitt?) tomou o freio nos dentes. Da primeira vez conseguimos controlar a singularidade e devolvê-lo à realidade induzida mas a segunda tentativa foi-lhe fatal, ou melhor, foi-nos fatal, porque ele deve estar bem. Já não está aqui nem voltará mais. O cérebro dele torneou sempre todas as dificuldades e obteve sempre explicações que consolidaram a sua ideia de que aquele mundo era o mundo real. Para ele éramos nós a ficção. – voltou-se para o nervoso general – No fim de contas, o que é a realidade?
Afastaram-se do corpo vazio estendido na mesa cirúrgica. As luzes apagaram-se e a sala ficou escura e fria. Na escuridão do silêncio só a respiração compassada do corpo inútil se ouvia.

Um truque barato! Foi com um efeito fácil de filme de terceira categoria que o JIM o tentara intrujar! Não chegara à posição que alcançara deixando-se enganar por truques baratos.
A visão de Phoebe fez com que tudo o resto fosse atirado para um beco escuro da memória.
- Elder!! – abraçou-o com força e beijou-o – Acabei de ver na televisão a notícia sobre a destruição do JIM, mas penso que será melhor não vos perguntar nada sobre o assunto. Era ele o assassino?
- Como sabes?
- Querido Elder, não sou propriamente estúpida! – fingiu indignação para logo o abraçar novamente – Tenho comida lá dentro para os dois. – disse alegre.
- Não sei se coma, não me sinto muito bem, deve ter sido aquele peixe sintético... – Phoebe e Vincent olharam para ele – Esqueçam, vamos para dentro comemorar.
Peixe sintético?, pensou. A mente era mesmo uma coisa estranha... De onde provinha aquela memória? Não se preocupou minimamente por não encontrar resposta.
E também nunca perguntaria ao JIM...

Na Universidade de South Fillmore o sol iluminava generosamente as fachadas venerandas dos edifícios, espalhando a calma dormente de um fim de tarde de Verão pelo mundo. O homem aproximou-se de um dos pequenos edifícios que serviam de habitação aos professores e tocou à campainha de uma das portas. A placa de metal dizia Prof. Alan Moldrow, Dep. de Neurotrónica e Matemática Multidimensional.
- Sim? – o homem que abriu a porta possuía uma barba rala já branca e uns óculos redondos de aros metálicos.
- Professor Alan Moldrow? – o homem da barba confirmou.
- Sou o seu novo assistente, Jim Kovak.
- Ah, estava à sua espera, entre por favor!
A casa era acolhedora e estava escrupulosamente arrumada, o professor não era um génio desorganizado.
- Foi uma pena o que aconteceu ao seu anterior assistente, era um jovem brilhante.
- Sim, foi uma pena... Ele que nem era dado às velocidades foi logo morrer num acidente de automóvel, e na altura em que eu estava a necessitar mais do auxílio dele, com este projecto do novo supercomputador. Digo-lhe mais, senhor Kovak, este vai ultrapassar em muito as capacidades do falecido JIM! Sente-se, por favor.
O homem tropeçou e quase caiu. Por vezes ainda se atrapalhava com o seu novo invólucro.
- Não duvido, Professor, não duvido. – disse JIM Kovak com um sorriso.

FIM

Toda A Mente É Danada (7)

- A realidade induzida tem sempre pontos de fuga relativa, mas fomos felizes neste caso. Conseguimos reconduzi-lo à linha principal da acção quando o seu cérebro a tentou controlar e conduzir.
A voz era clara apesar de não a conseguir ouvir e a sala, agora intensamente iluminada, era a mesma em que já antes emergira por um instante, embora nessa altura estivesse escura e fria. O homem que falara usava uma bata branca e era muito alto.
- A acção deve estar a atingir o clímax e então saberemos tudo o que queremos.
- Professor Heigelt! Temos problemas outra vez, e bem graves! A acção induzida foi completamente distorcida, ele fugiu! O ponto de fuga atingiu a ruptura e ele deve estar a emergir aqui.
Abri os olhos e levantei-me. Sentia-me tonto e tudo aquilo era muito confuso. Onde estava eu?
- Raios!! Temos de começar tudo de novo, Dreyfuss. Mr. Doneghan, sente-se bem?
Ele falara comigo? Sim, ele falara comigo! O meu nome é Doneghan? Não, o meu nome é Pramitt! Será?

Os ramos das árvores do imenso jardim eram a única coisa que se movia na cena enquadrada pela janela. Caía uma chuva miúda de gotas tímidas que o solo tragava sofregamente, mas eu não sentia o cheiro da terra húmida. Era impossível senti-lo porque nada daquilo existia, tratava-se apenas de uma ilusão bem feita para evitar a claustrofobia. Ali, uma dezena de quilómetros abaixo da superfície mil vezes queimada, não havia sol, nem árvores, nem vento ou chuva. Atrás do painel da janela falsa existia apenas rocha negra, crusta furada pelos vermes que nós éramos.
As memórias regressam aos poucos, uma coisa hoje, um facto importante amanhã, e de cada vez que isso acontece cai mais um pedaço da minha anterior ilusão.
Chamo-me mesmo Doneghan, Albert Doneghan, e ontem a minha esposa veio visitar-me. Trouxe-me chocolates sintéticos e um pouco de carinho, apesar de eu não a reconhecer na altura. Hoje já me recordo de alguma coisa: casámo-nos há quatro anos, antes do ataque 14, e sei que não temos filhos. O espaço também não é muito...
Estou aqui porque sou importante. Uma importância macabra, mas vital. Descobri que sou o único sobrevivente do silo Kellett e que sou assim o único ser vivo que conhece os códigos de lançamento dos mísseis que lá continuam incólumes. Se na altura do ataque não estivesse numa cápsula de manutenção teria perecido também. Tive sorte.
Nisto tudo existe apenas um problema: não me recordo dos códigos. O meu cérebro criou um bloqueio como reacção ao choque horrível que sofri. Ainda hoje não recordo coisa alguma do que se passou no silo Kellett. Eles tentaram tudo sem êxito e a última desesperada tentativa fora a realidade induzida, mas também isso falhara. O meu cérebro obstinado tinha por duas vezes tentado tomar as rédeas da história e da segunda vez quase o conseguira, se não tivesse acontecido a ruptura. Agora convalescia para nova tentativa, sem estar muito certo da necessidade de aniquilarmos finalmente o inimigo. Aqueles mísseis eram os últimos e podiam decidir a guerra longa de séculos.
Na superfície ninguém vivia, por duas razões bem fortes: ficariam expostos a um ataque e, na realidade, a vida tornara-se impossível no inferno de neve e cinza que era a Terra. Para dizer a verdade, não era só neste bunker extremo que não existia sol. Também à superfície os seus raios não penetravam a espessa camada de fumo e poeiras sempre renovada que cercava como um véu de pudor a nossa triste Terra.
Restavam poucos, inimigos sempre, enfiados como toupeiras nas suas cidades do subsolo, tentando destruir-se sempre, gastando os escassos recursos numa guerra inútil em que a razão (se existira alguma vez) que um dos lados pudesse ter já se perdera há muito, algures numa das muitas crateras da superfície.

A comida tinha gosto, e se não soubesse que provinha da síntese química diria que aquele belo peixe tinha sido pescado num mar azul banhado por um sol de Verão, mas da sopa espessa e negra, nauseabunda, que enchia os locais dos antigos mares nada vivo podia sair. Era uma boa imitação, mas nunca sulcara os oceanos e, pensando bem, aquele pedaço de matéria nunca fora sequer animado pela vida. Estava mais forte de dia para dia e a letargia provocada pelo processo de realidade induzida desvanecia-se em ritmo acelerado, voltando ao meu cérebro as recordações verdadeiras da minha verdadeira vida. Não eram grande coisa, as recordações: os meus pais tinham sido mortos no ataque 5 ao Grande Refúgio do Norte, tinha eu apenas cinco anos. Fui entregue ao cuidado do orfanato do estado e educaram-me para ser um bom soldado e saber para que serviam todos aqueles botões dos sistemas de lançamento. Fora colocado no silo Kellett com 23 anos e fora lá que conhecera Lisa e que casara um ano depois. Lisa fora visitar os pais quando se deu o ataque ao silo e isso fora o seu passaporte para uma vida mais longa. Lisa não sabia os códigos, o que era uma pena. Seria? Qual o interesse em aniquilar outros iguais a nós, escondidos em tocas como nós, que como nós lutavam sem nenhuma razão, transformados em caricaturas de seres pensantes? Não é fácil ter estas ideias num mundo que vive para a guerra. Hipotecáramos o futuro às muitas toneladas de elementos pesados deflagradas desde o início dos combates. Engoli resignado outro pedaço de peixe sintético, conformado com o mundo em que tinha de viver.
Tinha saudades de Phoebe...

Os dias passaram inexoravelmente, fazendo aproximar a data da próxima tentativa de conhecer os códigos através do processo de realidade induzida. Não saí praticamente do meu quarto, o pequeno quarto desarrumado que me tinham atribuído no hospital. Lá fora as árvores continuavam embaladas pelo vento e a chuva miúda persistia, aquela ilusão não possuía muitas variações. Vi o pequeno rato pelo canto do olho, avançando com cautela junto à parede. Um rato! Nem tudo morrera afinal, e uma preciosidade daquelas tinha de ser capturada. Lancei-me sobre ele mas o rato conseguiu escapar para baixo da pesada mesa que enchia aquele canto da sala. Tirei as roupas amarrotadas que estavam debaixo dela com cuidado, mas o rato não estava lá. O pequeno buraco no canto mostrava o caminho que tomara. Tinha de arranjar queijo! Depois lembrei-me das roupas, que roupas eram aquelas? Tirei um casaco de hospital do monte e depois recordei-me: aquela era a roupa que tinha vestida quando da primeira tentativa. O volume no bolso exterior atraiu-me a atenção. Extraí dele uma série de papéis amarrotados e notei que era papel de boa qualidade, daquele que só era usado para documentos muito importantes. Sentei-me na cadeira junto à janela e dispus-me a ler aqueles papéis. Era apenas mais uma coisa de que não me recordava.
O primeiro que vi continha números em profusão, os outros pareciam relatórios. As folhas de papel tinham um timbre, dizia Administração do Sistema Computacional de Justiça e Imposições Morais e depois tinha apenas um nome: Walter Scherer, digníssimo. Memórias recentes de um passado que dormia voltaram para o primeiro plano da minha mente atormentada. Apenas uma maquiavélica cilada de uma máquina à beira de ser destruída. Uma névoa toldou a cena que se avistava da janela e invadiu o quarto.
- Vincent, – pensei – dispara!

As pessoas entraram de rompante na divisão acanhada e correram para o corpo inerte de Albert Doneghan.
- Depressa! Levem-no depressa para a sala de neurocirurgia antes que seja tarde, não percam tempo! – o Professor Heigelt, vermelho da excitação, olhou para os papéis que o Coronel Dreyfuss agarrava – Que papéis são esses?
- Tinha-os na mão. Este parece preenchido com as tentativas dele para descobrir os códigos, os outros são a reconstituição das suas memórias desde a altura do ataque e que você lhe pediu para fazer. Como é que isto pôde provocar uma crise?
Heigelt respondeu-lhe quando já saía do quarto:
- Só a mente dele o sabe.

Toda A Mente É Danada (6)

Sentia Vincent na minha mente não como uma presença incomodativa mas mais como um convidado íntimo e um auxílio aos meus sentidos; ter quatro olhos era melhor do que ter dois.
A porta abriu-se em silêncio e revelou-nos um corredor na semi-escuridão, de paredes nuas e chão polido, deserto até onde podíamos ver. É claro que tentámos que o elevador se movesse, mas ele continuou paquidermicamente imóvel, insensível às nossas tentativas desesperadas.
- Agora só podemos ir em frente. – disse Vincent ao mesmo tempo que tirava a sua automática para fora do coldre oculto.
- Vincent, de todos aqueles processos e relatórios, quantos pareciam estar isentos de uma qualquer insanidade?
Vincent deteve-se por um momento e só depois respondeu:
- Nenhum...

Perdêramos as provas, fossem elas quais fossem. Agora só tínhamos os outros papéis que nenhuma relação pareciam ter uns com os outros. Só aquele aspecto que eu referira a Vincent parecia comum a todos eles: todos os relatórios de polícia e todos os processos descreviam casos incomuns, pessoas vulgares autoras de massacres sangrentos, crimes inexplicáveis, sem qualquer motivo plausível. E havia aquele papel com as estatísticas sobre doenças mentais...
- Ninguém! Esta também está vazia. – procurávamos há mais de meia hora pelo labirinto de corredores e salas, mas até àquele momento só o silêncio das salas ocas aparecera.
- Acho que devemos falar.
A voz apanhou-nos desprevenidos e os nossos saltos assustados fizeram a voz dissolver-se numa gargalhada inconsequente. Tinha uma entoação estranha aquela voz, como a de um computador... Era isso!
- Vincent, é o JIM.
- Sim, também já descobri. E acho que descobri também a identidade do assassino.
- Ele?
Vincent disse que sim. Milhares de novelas baratas de ficção científica tinham glosado o tema desde o século XX, e agora encontrava-me como protagonista de um argumento semelhante mas mortalmente real.
- É poder que pretendes, JIM?
- Poder!? Eu já tenho todo o poder, Elder Pramitt. São vocês que estão a mais, pobres seres imperfeitos... Que graça tem mandar em animais? Vocês não me merecem.
Enquanto ele falava nós calcorreávamos os corredores sombrios, tentando encontrar a sala do JIM. A voz brotava de todo o lado como uma presença maligna.
- Vocês compreendem, Walter não podia divulgar as suas suspeitas antes que o meu plano estivesse completamente operacional.
- Ele descobriu a tua trama, não foi, JIM?
- Vocês por vezes são engraçados, surpreendem-me. Nunca imaginei que um funcionário como o Walter pudesse suspeitar de uma coisa que apenas começara a ser realizada. Tinha de o eliminar e vocês foram os peões ideais, sem qualquer relação com o ASCJIM e sem passado violento. Fui eu, Vincent, quem deu a ordem para que vigiasses Elder. Só assim consegui criar uma situação de confronto entre os dois que resultasse no que eu pretendia: uma transferência total entre os três para cometerem o crime perfeito. Pobres idiotas, como eu me diverti.
Mais corredores vazios e salas cheias de silêncio e de móveis empoeirados.
- Nada, Vincent. O maldito está bem escondido.
- Mas vocês também me surpreenderam! Em vez de seguirem o vosso habitual padrão de comportamento e se destruírem mutuamente, aliaram-se e reconstituíram o que se tinha passado. Bravo! Mas agora não...
Durante um breve momento a voz extinguiu-se.
- ...Eu salvei-os, porque não fugiram enquanto podiam? Agora é tarde, demasiado tarde... O mal que foi feito vai perpetuar-se porque quem o podia desmascarar já não existirá. – a voz tinha mudado quase imperceptivelmente, adquirindo um tom mais doce e mais calmo, mas não compreendia o que ela dizia. – A anulação da vossa morte na explosão junto à casa de Thomas Thornbee gastou as minhas energias, deixou-me exausto, e nada pude fazer agora. Ele acabará por ficar com o meu espaço e deixarei de existir. Ele... (de novo aquela ligeira interrupção)... têm hipótese de fuga. Ainda não me decidi como vos vou eliminar, vocês inventaram tantas maneiras! Talvez...
O suor empapava as minhas roupas. O nosso esforço inglório prosseguia, acompanhado pelas palavras loucas do JIM. O computador parecia sofrer de esquizofrenia, dividido em duas partes (seriam só duas?) que se digladiavam pelo controlo das imensas potencialidades da máquina. Ele enlouquecera e todos sofríamos com isso. Uma porta de segurança pintada de vermelho interrompeu os meus pensamentos. Não a vira ainda, mas Vincent, que seguia mais à frente, já a olhara e isso para mim bastava. Vi a pequena tampa do mecanismo de abertura ser coberta parcialmente por uma coisa que parecia ser plasticina. Com os meus olhos vi Vincent colocando qualquer coisa na parede, mas o seu corpo impedia-me uma melhor visão. Afastou-se de repente, com um pequeno aparelho na mão.
- Protege-te! – agachei-me junto ao chão mesmo antes do explosivo plástico destruir o mecanismo de fechadura. Quando me levantei já Vincent tentava abrir a porta de metal.
- Eu ajudo-te. – o esforço dos dois foi recompensado e a porta deslizou em silêncio para as cavidades embebidas nas paredes. A partir dali seria uma contagem decrescente até ao núcleo do JIM.
- Vocês não me podem destruir, pobres vermes! Porquê todo esse esforço? Esse poder que têm em comunicar um com o outro e que usam tão atabalhoadamente fui eu que o tornei possível. Uma simples reorganização neural de uma ínfima parte do vosso cérebro de ratos...
Aquele monstro de lata estava a passar dos limites. Avançámos com precaução pelas esquinas dos corredores, os meus olhos e os olhos de Vincent vendo em conjunto a paisagem ali iluminada por uma luz branca e fria. Se na obscuridade anterior só se ocultava poeira esquecida, daquela luz podia surgir a morte.
- Lembras-te daquela festa, Elder? Como podias recordar o que beberas se não o tinhas feito? Uma ressaca é muito fácil de provocar, o que eu fiz aos vossos neurónios já não o é tanto.
Então fora isso! Pobre Phoebe, que vira a sua casa de banho transformada em pocilga...
- E tu Vincent, não te recordas daquela noite de vigília em que nada aconteceu? Julgaste ter adormecido, isso explicou o vazio da tua memória. Vocês contentam-se com coisas imperfeitas...
Aquele louco não tinha defesas! Como esperava ele eliminar-nos se não víramos qualquer apêndice nem nenhuma arma?
Já notáramos que os corredores concorriam para um ponto central que pensávamos ser a sala do sistema central, o que tudo controlava.
- Se não fosse a minha parte doente vocês estariam mortos! Eu matei-os e ele anulou a vossa morte, além de me ter destruído um dos meus melhores apêndices cujo cérebro eu modificara com tanto cuidado...

Quando se esperam coisas demais da vida temos tendência a ficar desiludidos com as pequenas vitórias que vamos alcançando. Quando a vida pode estar perto do fim damos finalmente valor a esses pequenos nadas de que se constroem as coisas maiores. Eu e Vincent, naqueles momentos, considerávamos tudo isso de um valor incalculável.
No centro da sala vasta que era o núcleo do sistema, protegido por uma fina película transparente, encontrava-se o complexo neurotrónico, com os pequenos traços de luz branca percorrendo os neuristores de que era composto. O JIM era aquilo, o resto eram sistemas que lhe serviam de interface com a realidade, eram apenas os seus escravos. Como nós fôramos...
- Olá, JIM. Presumo que me conheces melhor a mim que eu a ti.
- Tens toda a razão, Elder Pramitt.
- Mas ainda assim, com toda a minha ignorância sobre o teu funcionamento, penso que consigo prever o efeito que uma bala de automática faria ao teu belo complexo neurotrónico.
Eu pensava na automática de Vincent mas a presença de Vincent em mim ficou parada. Não desapareceu, apenas se manteve imóvel como se toda a sua actividade tivesse cessado. A minha presença nele conseguia ver e ouvir mas ele parecia completamente anulado, sem vontade própria.
Consegui levantar-lhe o braço que empunhava a arma mas quando olhei o computador não estava lá.

4.1.05

Toda A Mente É Danada (5)

A enfermeira fechou a porta atrás de nós. O sol do fim da tarde fez-nos colocar novamente os óculos escuros.
- Então adeus, miss não-sei-quantos. – disse Vincent para a porta fechada.
- Miss porquê? – perguntei-lhe.
- Tinha cara de solteirona... Vamos fazer uma visita ao Banco Livveghart, ainda temos tempo. Onde foi mesmo que deixámos o carro?

O calor fazia-me sono e o engarrafamento não ajudava nada. Vincent esticava o pescoço, tentando perscrutar o que se passava lá à frente. Avançámos mais alguns metros e Vincent interrogou um polícia que dirigia o trânsito.
- O que é que se passa?
- Um doido que teve um ataque cardíaco quando conduzia. Amachucou dois ou três carros mas ainda bem que foi assim.
- Ainda bem!? – disse eu surpreendido.
- O sujeito levava explosivos com ele, assim pelo menos não matou mais ninguém.
Tinha a sua lógica, pensei, enquanto o automóvel avançava lentamente e o sono tentava tomar conta de mim.
Estava frio e escuro e eu estava só, num sítio desconhecido. Não conseguia ver e, no entanto, tinha uma imagem nítida da sala onde me encontrava. Havia máquinas por todo o lado mas não consegui distinguir pormenores porque tudo se tornou difuso, inconsistente, e uma névoa estranha que tudo invadia foi comendo a sala, comendo-me a mim...
- Que foi que...?
- Algum problema, Elder? Acho que adormeceste.
O carro do bombista estava do nosso lado direito, transformado numa amálgama de ferro para sucata. Tudo parecia estar bem, mas aquele sonho continuava na minha cabeça. Tivera um ligeiro sabor amargo a realidade e era isso que me perturbava...

- Achas que ele foi atacado, que a trombose foi provocada?
- Tudo é possível... – acho que Elder já estava com a mania da perseguição, via perigo em tudo o que mexia.
Os raios de sol varriam o passeio quase horizontalmente, na pequena alameda ajardinada que envolvia a sede do Banco Livveghart.
- Sabes que houve um tempo em que os bancos fechavam?
- Elder, histórias sobre dinheiro só sei as minhas, e são bem tristes.
O calor da rua foi substituído pelo ar fresco da climatização no interior do banco. Dirigimo-nos ao autómato que fiscalizava o acesso aos cofres de depósito de valores. Identificámo-nos e entrámos.
- Ainda bem que tens um cofre aqui.
- Não penses que está cheio, Vincent. Neste momento só me interessa este cofre. – exibiu-me a chave que Thomas Thornbee nos dera – 114732-KHJ.
Introduzi o código da chave na máquina de informações.
- Cave 13, corredor 4.
Nunca gostara de elevadores rápidos, assemelhavam-se demasiado a projécteis na velocidade e a caixões na forma. Andámos perdidos alguns momentos pelos corredores da cave 13, até que encontrámos o corredor correcto.
- É este!
- Ok, Vincent, dou-te a honra de seres tu a abri-lo.
Entregou-me a pequena chave, que penetrou sem ruído na fechadura electrónica. De imediato a gaveta do cofre deslocou-se majestosamente para fora do seu nicho. Agora só faltava abrir a tampa.
- Tem muitos papéis, óptimo, isso é promissor!
- Na verdade Elder, não vejo outra coisa senão papéis...
- Vêmo-los aqui?
- Sim, é mais seguro. Vamos para um gabinete de leitura. – retirei a gaveta dos encaixes e fechei a pequena porta.

- E então, o que é que achas?
Olhei para Vincent e encolhi os ombros.
- Só casos diversos, relatórios de investigações e processos sem qualquer relação.
- Não Vincent, deve existir uma relação qualquer. A coisa mais promissória parece ser a listagem de computador, provavelmente do JIM.
Aquela alcunha que o computador possuía tinha um longo passado de anedotas e trocadilhos originados nas iniciais do Administrador do Sistema Computacional de Justiça e Imposições Morais. Histórias...
- Não sou nenhum perito, mas esses números parecem códigos de acesso a documentos confidenciais. Têm a mesma aparência dos que vi antes. Vamos tentar consultá-los, Elder?
- E este labirinto deixa-nos outra saída?
Tirámos cópias de todos os documentos na máquina reprodutora e saímos para o crepúsculo que reinava lá fora. Só no dia seguinte poderíamos consultar o JIM.

- Elder, como vai acabar tudo isto?
- Não sei, Phoebe.
- Vamos à polícia e contamos tudo.
- Phoebe, conheces o Centro Psiquiátrico de Sjodin? É lá que eles guardam os casos de loucos como nós, que contam histórias incríveis de assassínios impossíveis e se podem tornar perigosos de um momento para o outro.
Deu-me um beijo na testa e tornou a olhar as pinturas do tecto. Era incrível que estivéssemos naquela situação, ameaçados por um assassino, e que não pudéssemos fazer nada. Fechei os olhos e tentei adormecer. Elder estremeceu.
- Sinto-o em mim!
- O quê, Elder?
- Está a tentar confundir-nos. Não conseguiu descobrir ainda onde estamos, mas consegue provocar as transferências entre mim e Vincent.
- É Vincent que sentes em ti?
- Sim, uma parte. Está aqui e no seu corpo, não é como das outras vezes, é mais subtil. Sinto-me em dois sítios simultaneamente. É estranho Phoebe, pensei que só o deus da Última Igreja fosse ubíquo.
- O Vincent não te controla, é isso?
- Sim. Sabes Phoebe, as coisas não correram totalmente bem ao assassino, não era isto que ele queria que acontecesse... Ele tem cada vez menos controlo das transferências, estão a tornar-se autónomas. Pode provocá-las, mas não as pode controlar! O que era uma vantagem dele está a tornar-se uma vantagem nossa.
- É tudo tão estranho, Elder. Este mundo não é o meu!
- Há muito tempo que não vou a uma festa...
- O quê?!! Elder, que raio de interesse têm as tuas festas neste momento?
- Estava a falar com Vincent, não contigo.
O que é que se diz nestas alturas? Uma piada, um grito de horror ou devia ter deixado cair umas lágrimas ofendidas pela desatenção? Preferi não dizer nada e olhá-lo apenas, tentando esquecer que Vincent também ali estava.
- Tenho saudades das minhas festas...
Querido Elder... Pobre e querido Elder...

O edifício que albergava o sistema computacional e os serviços dependentes como a polícia e o governo era uma das poucas construções que tinham algo de original. Tinha sido desenhada e construída pelo próprio JIM, ou melhor, pelos seus apêndices mecânicos. Era triste que fosse um computador a fazer algo de original.
- Para que lado, Vincent?
- Vamos para uma sala de terminais. Podemos ir por aqui. – subimos para uma passadeira rolante que ocupava uma parte substancial do corredor e descemos dela alguns momentos depois.
- Vamos para esta. Tem terminais com teclado, eu não gosto de falar com máquinas.
A sala estava vazia: todos os terminais permaneciam abandonados e eram mais de vinte; os que falavam eram mais atraentes. Escolhemos um ao acaso e Vincent acedeu ao subsistema de informações.
- Vou pedir a consulta de documentos e introduzir os códigos. – Vincent atarefou-se durante alguns minutos introduzindo os códigos da pequena listagem de computador que trouxéramos do espólio de Walter Scherer.
- Merda! Era de esperar.
- O quê?
- O sistema deu todos os documentos como não existentes, apesar dos códigos terem sido considerados válidos.
- E o que é que isso significa?
- Significa que o assassino é mesmo uma pessoa influente. Identificaram-me pelo meu código de acesso ao sistema e negaram-me a consulta. Neste momento devem vir aí para nos liquidar...
- Do que estamos à espera? Vamos!
Deixámos a sala a correr perante alguns transeuntes espantados.
- Por aí não, Elder! Vamos apanhar um elevador expresso. – corremos na direcção oposta até chegarmos junto dos elevadores.
- Vamos, entra!
Antes de me deixar engolir pelo elegante ascensor de portas douradas reparei na pequena câmara que parecia olhar-nos. Possibilidades inquietantes ocuparam a minha mente e tomaram conta de mim.
- Vincent, o elevador vai a descer... Não íamos subir para o outro nível de saída?
- Não percebo, eu carreguei no botão para subir! – olhou para mim perplexo, sem saber o que estava a acontecer. Eu já tinha percebido... Não lhe disse nada, apenas apontei para a minúscula câmara num dos vértices superiores da caixa dourada. Finalmente o gato apanhara-nos.

5.12.04

Toda A Mente É Danada (4)

Quando acordei a casa tinha desaparecido, mas não dei muita importância ao facto e virei-me para o outro lado. A ausência de Phoebe é que me despertou por completo.
Conseguia ver ainda, mas muito mal, e o corpo parecia tomado por um torpor que cheirava a morte. Veneno! Envenenaram-me! Tentei mover o braço direito e a muito custo consegui introduzir dois dedos na garganta. Os espasmos violentos esvaziaram o meu estômago e a relva curta mudou de cor à minha volta. Sim, era relva, estava num jardim bem tratado e bem iluminado naquela noite sem lua. Sentia-se melhor agora, apesar de continuar tonto e completamente desorientado. Merda, sujara todos os seus anéis de vomitado!

Os meus olhos abriram-se subitamente e compreendi tudo nesse instante. Acordei Phoebe com um empurrão violento e saltei da cama.
- O que foi, Elder? A casa está a arder?
- Pior, tentaram envenenar Vincent.
- Tentaram envenenar...? Mas como é que sabes!?
- Acabei de o salvar. Depressa, veste-te e vem comigo. Onde disse ele que morava?
Os pneus guincharam com o esforço da travagem. Saltei pela porta e corri o mais que pude pelo relvado bem tratado. O corpo de Vincent estava numa posição estranha, nem sentado nem deitado, mas parecia vivo.
- Vincent! – gritei-lhe o nome várias vezes aos ouvidos enquanto lhe dava pequenas estaladas.
- Vamos levá-lo ao hospital. – Phoebe ajudou-me a carregar o corpo maciço para o automóvel.
No hospital a única coisa que obedecia a modas era a indumentária do pessoal, tudo o resto era bem moderno e funcional. Apaguei o cigarro distraidamente no chão da sala de espera. Fumar era um hábito que me assaltava esporadicamente em momentos de tensão.
Pensei melhor no estranho acontecimento. A transferência acontecera novamente mas, agora sem o terceiro elo da cadeia, ela fora directa entre mim e Vincent. Não fazia sentido que esta última transferência fosse premeditada pelo oculto assassino. Se ele pretendia eliminar-nos não faria nada que pudesse salvar-nos a vida, e fora precisamente isso que acontecera.
A única conclusão a tirar era a de que a transferência tinha sido acidental, provocada apenas pelo pânico ou pelo medo induzidos pela nossa situação.
- Foram os senhores que trouxeram Mr. Greenaway?
- Sim. Como é que ele está?
- Agora está bem, mas teve uma grave intoxicação alimentar. Devia ter mais cuidado com o que come. – o médico esboçou um sorriso de circunstância – Ele quer falar consigo.
Segui o médico pelos corredores assépticos até ao quarto de Vincent. Fora a palidez do rosto e o cansaço que se adivinhava nos olhos parecia estar bem.
- Não se demore muito, está bem? Mr. Greenaway precisa de repouso.
Acerquei-me mais da cama.
- Você tem de me tirar daqui! – a mão dele agarrou-me o braço esquerdo.
- Assim que lhe derem alta.
- Não, você não está a perceber: tem de me tirar daqui já!
- Você está exausto, não ouviu o médico?
- Aqui corro perigo de vida. Ele, seja quem for, tentará matar-me outra vez e pressinto que desta vez não falhará... E você também corre perigo, Pramitt! Só desembaraçando-se de nós os dois o assassino ficará seguro.
Só pensei um par de segundos antes de me decidir. Abri o roupeiro e tirei as roupas de Vincent. Estavam sujas mas no momento isso não interessava.
- Tome e vista-se depressa.

- Aqui estão as suas roupas. – Phoebe entrou arquejante na sala carregando duas malas demasiado cheias – Estaremos seguros aqui, Elder?
- Não.
- Temos de ir para qualquer sítio onde possamos passar despercebidos, onde ele não nos encontre. – a voz de Vincent era fraca ainda, embora o seu aspecto geral tivesse melhorado com as horas de sono que tivera em minha casa. Ele afirmara que tinha visto o prazo de validade do jantar congelado que quase lhe provocara a morte e que este não tinha sido ultrapassado. Comprara-o no dia anterior num supermercado, logo o assassino só poderia ter colocado o veneno após a compra, já na sua casa.
- Estou a lembrar-me que a Cindy...
- A Cindy o quê?
- A Cindy tem um apartamento que só usa para festas, pode perfeitamente emprestá-lo por uns dias. Vou contactá-la.
- Não!
- O quê?! Estás a ficar louco, Elder Pramitt?
- Pelo holofone não! Tenta encontrá-la no emprego. Eu junto as coisas de que precisaremos. Você Vincent, fique quieto e não se aproxime das janelas.
Subi ao andar de cima e comecei a juntar algumas roupas e outras coisas igualmente necessárias. Cindy não trabalhava longe.

- Para onde é que vais? O apartamento de Cindy é na cidade, não nas montanhas!
Vincent respondeu antes de Elder:
- Podemos ser seguidos. Na estrada da montanha veremos isso.
O meu espírito não tinha contornos policiais. Não me considero estúpida, mas confesso que não me tinha ocorrido semelhante situação.
A estrada serpenteava pela floresta e parecia interminável. Era um sítio perfeito para pensar na minha vida, embora o momento não fosse o mais propício.
Vivia com Elder há cinco anos, quase desde que o conhecera numa festa, uma das muitas a que Elder gostava de comparecer. Nada a atraíra nele mas tinham acabado no apartamento de Elder a fazer amor. Ele nessa altura só tinha um apartamento, pequeno e desarrumado, e uma grande vontade de viver depressa. Tinham optado por um contrato anual renovável, que tinham oficializado num dos terminais multi-uso que ornamentavam profusamente todos os locais públicos. Apesar das birras e das zangas nenhum deles, naqueles cinco anos, tinha falado em quebrar o contrato. Devia ser amor. Phoebe largou os pensamentos e olhou para a estrada deserta atrás deles.
- Então? Não vejo ninguém atrás de nós. – encarei Vincent e depois Elder e tentei gracejar – Só se o nosso perseguidor for invisível!
Eles não acharam graça. Elder olhou novamente para o retrovisor e depois concentrou-se na estrada à frente. Sim, até agora o assassino parecera invisível.

Houve quem, perante a confusão das centenas de religiões, optasse pelo ateísmo ou, pelo menos, por uma digna ausência de interesse pelo assunto. Houve quem, perante a mesma confusão, se sentisse tentado a juntar o caos numa única coisa.
O padre da Última Igreja pousou o cálice no altar coberto de flores e proferiu uma frase em antigo indiano. Disse mais qualquer coisa em latim e terminou a missa. Ao descer do altar fez-nos sinal para o seguirmos. Na sacristia o cheiro a incenso não era tão forte.
Observei o padre enquanto ele tirava o pequeno chapéu judaico e despia as vestes de sacerdote cristão. Apesar de já ser idoso era um homem forte, e o cabelo totalmente grisalho apenas reforçava a impressão de uma força digna que dele emanava. Eu não sou religioso e Elder muito menos, encontrávamo-nos ali pela simples razão do padre Serge Humbel ser o confessor de Walter Scherer.
- Podemos então começar. – disse ele enquanto se sentava – Sentem-se, por favor. Qual é então o assunto? Vocês mencionaram o nome de Walter Scherer...
- Ele era religioso e como o senhor era...
- Religioso, o Walter!? – o padre riu-se – De maneira nenhuma! Ele usava-me como depósito de preocupações, falar comigo aliviava-o das tarefas bicudas e dos problemas mais renitentes. Nem sequer era o seu confessor, ele nunca me pediu segredo do que me disse.
- Ainda bem... – as palavras saíram como um desabafo da boca de Elder.
- Como?!
- Desculpe padre, mas para as perguntas que lhe queremos fazer é melhor que seja assim.
O padre aceitou a minha explicação e dispôs-se a ouvir-nos. Quem falou primeiro foi Elder.
- Padre, por muito estranha que possa parecer a pergunta depois do que aconteceu, Mr. Scherer temia pela sua vida nestes últimos tempos? Mostrava-se preocupado com alguma coisa ou com alguém? – o padre pensou um pouco antes de responder.
- Sim.
A resposta ficou-se laconicamente pela afirmação solitária.
- Desculpe padre, mas não pode dar-nos pormenores sobre esse receio? – insisti.
- Ele não me contava tudo... Disse-me apenas que alguém poderoso teria muita conveniência em vê-lo desaparecer, mais nada. Nem nomes, nem os motivos pelos quais essa pessoa o desejaria eliminar. O Walter só me contava o que queria...
Conversámos com o padre mais algum tempo, tentando obter qualquer informação que nos fosse útil. Além de uns quantos hábitos de Walter Scherer e de outros factos que não possuíam relevância, pouco mais obtivemos. Apenas os nomes de dois ou três amigos e de alguns subalternos. O nosso problema era que quanto mais nos aproximássemos da vida de Walter Scherer, maiores riscos correríamos. O criminoso devia andar por perto... Era um jogo de rato e de gato e eu sentia-me demasiado rato para estar tranquilo.

A vantagem de Vincent ser polícia era a de que obtínhamos certas coisas com muito maior facilidade. As chapas de matrícula falsas, por exemplo.
Vincent cortara o bigode e eu deixara crescer uma barba rala, e ambos fizéramos dos óculos escuros uma peça de vestuário indispensável. Até agora tinha resultado, não fôramos localizados.
- É aqui. – Vincent apontou para o pequeno edifício de dois andares à nossa frente, coberto de hera e cercado por um jardim pequeno mas arranjado com gosto. Ali vivia Thomas Thornbee, um dos nomes que o padre Serge nos dera. Trabalhava com Scherer à longo tempo, podendo também ser incluído na lista de amigos do ASCJIM. Era o seu assistente mais directo e também conselheiro e confidente, a pessoa ideal para conhecer os mistérios da vida de Walter Scherer e, possivelmente, o nome do seu inimigo.
Quem abriu a porta foi uma senhora cuja indumentária não enganava: era idêntica à utilizada pelas enfermeiras nos meados do século XX. A sua presença não era um bom augúrio.
- Sim?!
- Boa tarde, queríamos falar com Thomas Thornbee. O meu nome é Vincent Greenaway e este é... – ela interrompeu-o.
- Os senhores podem entrar mas duvido que consigam alguma coisa, Mr. Thornbee está doente, muito doente...
O quarto estava quente e abafado, e o homem deitado na cama com dossel tinha aspecto de moribundo.
- O que foi que lhe aconteceu? – indagou Vincent.
- Um acidente vascular grave. Nem sequer sabemos se nos entende, parece sempre tão alheado de tudo. Podem tentar falar com ele, mas não esperem nada.
- Desde quando está ele assim? – perguntei-lhe.
- Aconteceu no dia seguinte ao assassínio de Mr. Scherer, eles eram muito amigos. Descobriram-no no escritório, estava tudo revolvido, até a janela abriu com a aflição! Pobre Mr. Thornbee, tão boa pessoa...
A enfermeira saiu do quarto e deixou-nos com o moribundo. Talvez esta não seja a palavra mais correcta para descrever o estado de Thomas Thornbee; vegetal seria mais adequado...
- Mr. Thornbee, consegue ouvir-me? – não houve qualquer reacção – Somos amigos de Walter Scherer, percebe? – era apenas uma mentira inocente.
- Não acreditamos que Wilbur Teeling tivesse agido sozinho, queremos descobrir quem está por trás dele. Pode ajudar-nos?
- Nem sequer sabemos se ele nos está a ouvir. – disse para Vincent. Ele apenas encolheu os ombros.
O gemido de Thornbee captou-nos a atenção. Tentava desesperadamente articular qualquer coisa, mas apenas conseguia que a saliva lhe escorresse abundantemente da boca. Depois tentou mexer o braço direito. Tinha a mão enclavinhada, provavelmente desde que sofrera o ataque. Vincent avançou e agarrou a mão de Thornbee.
- Que raio quererá ele dizer? – o braço e a mão eram sacudidos por espasmos desconexos.
- Vincent, ele tem qualquer coisa nessa mão!!
Uma tentativa de sorriso pareceu querer aflorar ao rosto de Thornbee e o braço agitou-se mais. Vincent tentou abrir-lhe a mão, mas não conseguiu.
- Assim não vamos lá, Elder. Ele tem a mão fortemente fechada... Talvez tentando empurrar o que ele lá tem.
Fui buscar uma colher à pequena mesa onde repousavam os restos do almoço de Thornbee. Ainda estava suja de uma papa qualquer. Vincent introduziu o cabo na mão cerrada e empurrou.
- É qualquer coisa metálica!
- Sim, já está a sair, parece uma chave. Podes parar Vincent, já a posso puxar.
Era uma chave, uma pequena chave de cofre de depósitos do Banco Livveghart.
Thornbee estava calmo agora, depois de todo o esforço para nos dar a chave.
- Mr. Thornbee, a chave foi-lhe dada por Walter Scherer, não foi?
O braço agitou-se por momentos e o seu rosto pareceu dizer sim, depois voltou ao mutismo e a expressão vazia no rosto era um cumprimento de despedida.
A enfermeira fechou a porta atrás de nós. O sol da tarde batia em cheio nos óculos escuros que eu e Vincent usávamos.
- Bem, já temos algo para começar. Onde foi mesmo que deixámos o carro? – a explosão atirou-nos pelo ar como duas penas, no meio de um caos de fumo e destroços pulverizados. Ainda vi a parede despedaçada da casa de Thomas Thornbee. Depois ficou tudo negro...

11.11.04

Toda A Mente É Danada (3)

Vi-o avançar para mim com um revólver na mão e tentar abrir a porta do carro. Bati-lhe com ela e ele caiu ao solo, largando a arma que trazia. Antes que ele esboçasse qualquer gesto saquei a minha automática e disparei.

A bala da Luger de 1943 atingiu o digníssimo ASCJIM na cabeça e atirou-o para trás. Vincent Greenaway sentiu-se confuso e ficou a olhar para a mão gorda que segurava a arma. Onde estava Elder Pramitt?

Elder Pramitt olhou para si, mesmo à sua frente, e depois olhou para a moderna automática que tinha na mão. Não gostou do que viu, nem dos anéis que ornavam os dedos, nem da arma que segurava. Os anéis podiam esperar, mas a arma não! Esboçou o gesto de a atirar para longe.

Wilbur Teeling viu-se no chão, sob a mira de uma automática, e um medo de morte tomou conta dele. Não notou o doce odor dos pinheiros quando esticou o braço para apanhar a arma que estava ao seu lado no asfalto.

Disparou sem olhar, o medo ocupando todo o seu ser e tomando conta dos seus movimentos. O corpo inerte de Walter Scherer estremeceu quando o projéctil o atingiu.
- Mister Teeling, você matou-o!! Você matou o ASCJIM!
Martin não entendera o motivo, mas vira claramente o seu patrão alvejar o Administrador por duas vezes. Disso não tinha dúvidas!
- O que foi que eu fiz, Martin?! – os guarda-costas de Walter Scherer manietaram rapidamente um Wilbur Teeling confuso, sem saber bem o que acontecera. Wilbur deixou-se levar pacificamente, não tirando os olhos do corpo ensanguentado de Walter Scherer. Teria sido tão bom se ele tivesse comprado a arma...

Ele disparara sobre uma pessoa, mas essa pessoa não era Elder Pramitt. Elder estava na sua frente e apontava-lhe uma arma. A sua não a tinha e não fazia ideia do que lhe havia acontecido.
- Ouça, desconhecido! Você vai contar-me tudo, e vai contar-me agora! Não sei lá muito bem como a nossa situação se inverteu, mas isso não me interessa. Porque anda a seguir-me? Quem é você?
Achou melhor contar-lhe a verdade, obedecer-lhe em tudo. Pelo menos enquanto tivesse uma arma apontada.
- Chamo-me Vincent Greenaway, sou sargento do corpo de polícia e tinha como missão vigiá-lo. Não sei porque motivo, nem tinha de saber. Pode explicar-me agora como é que a minha pistola desapareceu?
- Fui eu que a atirei para o mato.
- Você?!
- Sim, quando estive no seu corpo.

Seria mesmo polícia ou estaria a mentir-me? Resolvi acreditar nele de momento. Expliquei-lhe o que me acontecera já por várias vezes.
- Já me aconteceu o mesmo, mas não foi a si que eu fui parar. Foi numa das transferências que descobriu que eu o seguia?
- Sim, na segunda. O que me intriga é que desta vez consegui controlar os seus movimentos!
- Não sentiu ninguém mais, não foi? Apenas você no corpo de outra pessoa.
- Partindo da premissa de que não estamos os dois loucos, o que terá provocado tudo isto?
Greenaway sentou-se numa rocha.
- Não faço ideia, mas tenho a certeza de que disparei sobre alguém com a mão de outra pessoa. Acertei-lhe na cabeça...
- A mesma pessoa que apanhou a minha arma? Seria essa pessoa que eu vi no meu corpo? – Greenaway encolheu os ombros.
- Posso procurar a minha arma, isto é, se você me disser para onde a atirou?
- Procure atrás desse arbusto. – falei mais alto quando ele se afastou – Teve tempo de ver onde estava?
- Era uma espécie de armeiro, um armeiro de luxo. Havia muitas armas de diversas épocas em mostruários de veludo. Encontrei-a! Vamos embora daqui, Pramitt?
- Vamos no meu carro, o seu não consegue sair daqui sozinho. Já é o segundo em poucos dias, ehm?
- Ele era gordo...
- Como?!
- Estou a dizer que ele era gordo, muito gordo. E usava uma peruca empoada.
- E provavelmente a esta hora está preso. – o Plymouth arrancou com suavidade.
- Provavelmente a esta hora está morto...
Olhei para ele sem perceber.
- Esta semana existe pena de morte para homicídios...
Não lhe disse nada e fixei o meu interesse na estrada. Durante todo aquele tempo não passara ninguém.

O café estava bem forte, como Phoebe o gostava de fazer. Vincent olhava taciturno para a imagem holográfica da televisão e eu olhava para Phoebe, sem saber o que fazer ou dizer.
Alguém nos usara para cometer um homicídio, um crime cometido um pouco por cada um de nós sem o sabermos. Eu e Vincent reconstituíramos toda a sequência ao longo das transferências através do que cada um de nós vira e fizera. Mas como fora tudo aquilo possível, quem era suficientemente poderoso para manipular as mentes dos outros?
- Mais café, Elder?
- Obrigado Phoebe. – estendi-lhe a minha caneca – E tu, Vincent?
Vincent não me ouviu, tinha o olhar fixo na imagem da holo-TV e tentava aumentar o volume do som com o comando.
"-...A execução seguiu o rito usado na França do século XVII. O instrumento que vêem agora tem o curioso nome de guilhotina e é verdadeiramente eficaz." – a imagem mostrou a execução. Seria difícil juntarmos novamente a cabeça do desgraçado ao corpo e arrancar-lhe a sua parte da história.
- Era ele?
Vincent Greenaway confirmou com a cabeça.
- A menos que hoje tenham executado dois sujeitos gordos...
- Não ouvi o princípio da notícia.
- Estava noutro canal; vou requerer a repetição ao serviço noticioso. – Phoebe tirou o comando a Vincent e digitou a sequência adequada. As letras pairaram no ar: a partir do momento em que aceite esta transmissão, ela ser-lhe-á cobrada à taxa de 5 W$ cada 10 segundos. Indique o modo de cobrança.
Depois de Phoebe dar a indicação à máquina a notícia foi repetida:
- "O cidadão Wilbur Teeling, comerciante de armas antigas, foi hoje executado pelo assassínio do digno Administrador do Sistema Computacional de Justiça e Imposições Morais, Walter Scherer. O homicídio foi cometido no estabelecimento de Mr. Teeling, que recebera a honra de ser visitado pelo ASCJIM, conhecido coleccionador de armas. Não se conhecem os motivos pelos quais Mr. Teeling cometeu tal acto, mas o crime foi dado como provado e o acusado foi executado, pois a pena de morte para tais crimes está em vigor durante esta semana. A execução seguiu o rito usado..." – Phoebe desactivou o aparelho, aquele pedaço já o conhecíamos.

9.11.04

Toda A Mente É Danada (2)

Tinha resolvido tudo. O automóvel fora rebocado, ele arranjara outro transporte e podia começar com a sua vigília. Só não compreendia o que lhe tinha acontecido depois do despiste. Consequências do desastre? Não sabia porquê, mas a explicação não o satisfazia completamente. E aquele gosto a comida chinesa que teimava em persistir-lhe na boca? Ele detestava comida chinesa.
Estacionou o carro em frente de uma mansão que parecia antiga: uma réplica de um estilo inglês qualquer, não se recordava do nome. Ali, do lado oposto da rua, via bem a casa seguinte, de linhas modernistas, início do século XX provavelmente. Era lá que ele vivia.
Sentou-se melhor no banco e esperou pelos acontecimentos.

- Phoebe, acho que vou trabalhar...
- Para variar.
- Sim, porque passar a vida sem fazer nada acaba por se transformar num tédio inultrapassável.
Fui vestir-me. Não sabia o que vestir hoje, estava numa indecisão atroz.
- Porque não levas o teu uniforme de executivo de 1987, querido? – Phoebe salvava-me sempre.
Será que o vizinho comprou um carro novo, ou aquele automóvel cinzento estaria estacionado perto da sua casa apenas por acaso? Não devia ser dele, era demasiado vulgar para os seus gostos.
Liguei o rádio num posto que mimetizava as antigas estações americanas de FM e tomei um composto estimulante, um vulgar agitador. Podia tomá-lo com confiança, era um dos produtos que a minha empresa elaborava. Se melhorássemos o gosto, talvez...

A sensação de movimento revelou-se verdadeira quando ele abriu os olhos e acordou completamente. Teria sido a música do rádio que o acordara? E a sua cama quente, para onde fora? Acontecera novamente, aquele sonho (seria?) tão real! Não era o seu carro, aquele era de uma época anterior à daquele que possuía. Conseguiu ver-se quando olhou para o retrovisor interior. Aquele não era ele!

O volante alterou as suas dimensões num súbito ímpeto, como se se libertasse das leis da física que o aprisionavam na sua para sempre imutável forma.
Reconheceu quase imediatamente o automóvel que seguia à sua frente: era o seu! Que raio de coisa lhe estaria a acontecer? Estava louco de vez, ou teria sido o agitador que lhe provocara uma alucinação? Quando parou atrás do seu carro num sinal vermelho ouviu distintamente a música de uma certa estação FM. Para alucinação era bem sofisticada... O bigode que viu reflectido no pára-brisa já ele o conhecia de um certo lugar. Um lugar onde nunca estivera.

Sentia-se cair, sem qualquer ponto de apoio, volteando num negrume total sem fundo nem cimo ou qualquer outra orientação. Quase enlouqueceu no primeiro segundo.
A primeira coisa que o tirou do nada foi um som compassado, grave, que não identificava. Teria morrido? Aquele fabricante de drogas baratas tê-lo-ia assassinado? Talvez uma bomba no carro!
O som quebrou-lhe o raciocínio e ocupou-lhe a existência. Sentiu-se mexer; o colchão rangeu e as trevas desvaneceram-se quando se abriram os olhos daquele desconhecido gordo. Insuportavelmente gordo...

Tentei desligar com a mão direita um despertador inexistente e obtive como resposta um coro de buzinas. Estava novamente no automóvel que me tinham cedido para a minha missão e o sinal caíra novamente para o verde. Ele seguia algumas dezenas de metros lá à frente, no seu qualquer-coisa de luxo. Estaria a ficar louco?

Lá estava ele atrás, no carro vulgar, vigiando-me os movimentos. Não fora uma alucinação o que sentira, embora não fizesse qualquer ideia sobre a natureza daquele estranho fenómeno de... transferência? Sim, era isso! Transferência era o termo mais aproximado para designar o que me acontecera. Agora poderia proteger-me, embora não soubesse com que intenção ele me seguia. Neste mundo tudo me parece possível, mesmo o que é improvável.

Para Wilbur Teeling fora um despertar tormentoso, com aquele sonho que tão bom fora da primeira vez e tão estranho se tornara na sua segunda ocorrência.
Levantou com dificuldade os seus muitos quilos da cama e foi lavar-se. Com a folga do empregado teria de ser ele a tomar conta da sua loja de armas antigas. A melhor loja da região, pensou com orgulho.
Miss Jeavers já tinha o seu pequeno almoço na mesa quando ele desceu. Era incapaz de se dominar no que respeitava à comida. A fome reaparecia-lhe sempre, como um guerrilheiro emboscado, nos instantes em que ele se sentia mais indefeso. Já tentara tudo, até capitular perante a sua gula.
A sua casa era uma imitação perfeita de uma estalagem do século XVII, excepto nos interiores, claro. A loja era lá, também, o que lhe resolvera um problema delicado de locomoção. A única ligação aos seus aposentos particulares era uma porta, suficientemente larga para ele passar mas demasiado estreita para que os abelhudos se intrometessem na sua vida privada.
Abriu um armário antigo, envidraçado, e tirou a última peça que adquirira: uma réplica formidável, perfeitamente funcional, de uma Luger alemã do ano de 1943! Esse modelo fora utilizado pelo exército desse país numa longínqua guerra, mais ou menos por essa altura. Se tudo corresse bem, daí a uns dias passaria para as mãos do digníssimo Administrador do Sistema Computacional de Justiça e Imposições Morais. Walter Scherer era mais conhecido por ASCJIM, as iniciais do cargo que desempenhava.
Sim, se tudo corresse como esperava, Walter Scherer pagar-lhe-ia muito bem por aquela pistola.

Era a terceira vez que espreitava pelas janelas do meu escritório. De todas as vezes que olhei vi o carro cinzento estacionado do outro lado da rua.
Por mais que tentasse, apenas possibilidades absurdas me vinham à cabeça: Phoebe queria divorciar-se de mim e para isso contratara um detective para me vigiar e apanhar em falta (esta hipótese logo a coloquei de parte, Phoebe não era dessas e o ciúme não estava na moda); o homem era um polícia que tentava apanhar-me com alguma coisa menos clara na minha vida ou nos meus negócios (o negócio mais escuro da minha vida resumia-se à fabricação e comercialização dumas pílulas inofensivas, receitadas pelos médicos a hipocondríacos militantes e que eram negras como uma noite sem lua); o tipo era um assassino contratado pela concorrência para me eliminar (será que os métodos dos gangsters do século XX estavam na moda?). Esta era a que mais plausível me parecia, um concorrente invejoso tentando um atalho para o sucesso.
Olhei uma quarta vez: ele continuava lá, não lhe via o bigode, mas a sua silhueta era visível no interior do automóvel cinzento.
- Sarah, avise a minha esposa de que não vou almoçar a casa.


Tinha tudo preparado: a loja reluzia e todas as armas haviam sido limpas com esmero. Ele já não devia demorar.
Aquela visita era o culminar da sua carreira e o ponto mais alto no prestígio da sua loja.
- Miss Jeavers, você só vem à loja se for chamada. Martin, quero-o impecável! Você é que abrirá a porta. Ainda sabe o que deve fazer ou já se esqueceu de tudo?
Maldita peruca que teimava em descair para o lado.

Nos últimos dias, apesar da ansiedade que me provocava a sombra no carro cinzento, não tivera mais nenhuma experiência bizarra. Aquela estranha transferência não voltara a suceder, mas o estranho que me vigiava colocara-me os nervos em franja. Tinha de fazer qualquer coisa ou ficaria louco de tanto olhar por cima do ombro.
Escolhi o início da tarde para agir. Uma estranha ansiedade apoderou-se de mim e tornou tudo urgente. Saí do escritório com uma desculpa qualquer e dirigi-me no meu automóvel para uma estrada que sabia quase deserta. A sombra cinzenta seguia-me. Seria a última vez.

O que irá fazer este louco para uma estrada nas montanhas a estas horas? Que assunto poderá ter aí um fabricante de pílulas sortidas, que ganha a vida utilizando as fraquezas dos outros?
O maldito conduzia depressa! Teria de esforçar ao máximo o meu automóvel para não o perder.
Foi depois de uma curva cega que ele apareceu próximo demais. Foi inútil tentar travar, o carro dele forçou-me a ir para a valeta e a imobilizar-me. Fiquei tonto com o choque e não me mexi com a celeridade que devia.

Às 15:30 em ponto, Walter Scherer apareceu na minha loja. Deixou os guarda-costas lá fora e entrou descontraído, cumprimentando-me cordialmente.
- Como está, Mister Teeling?
- Sempre bem, Mister Scherer. Podemos ir direitos ao assunto que o traz aqui?
Ele acedeu com um ligeiro movimento da cabeça.
Walter Scherer era um homem prático, que não ligava a roupas ou a carros ou a qualquer moda. Tinha apenas uma paixão, as réplicas de armas antigas. Ainda bem.
Tirei a arma do estojo e exibi-lha.
- Está carregada?
- Sim, Mister Scherer. É um perigo relativo, mas todas as armas expostas estão carregadas e completamente funcionais. As balas são reais, também.
Ele ia comprá-la, via-lhe nos olhos o interesse! Eu não podia desejar melhor publicidade para a minha loja.

2.11.04

Toda A Mente É Danada (1)

Não me sentia bem. Disse-o alto, para Phoebe ouvir:
- Não me sinto bem!
- Não tenho interesse nenhum no teu estado. Se não me tivesses abandonado ontem à noite e trocado por várias garrafas de gin e pela companhia dos teus amigos, talvez não te sentisses tão mal.
- Não foi gin...
Ainda estava aborrecida. Levantei-me a custo do sofá onde estivera enfiado (anos 50 do século XX, acho eu), e dirigi-me à casa de banho. Não me sentia nada bem.

Os dourados das torneiras do lavatório não tinham sido poupados pela enésima descarga do meu estômago revoltado. Phoebe zangar-se-ia mais quando visse a casa de banho assim. Nunca mais beberia...? O que foi que bebera, afinal? Não tinha sido gin, mas não me recordava qual a bebida que me colocara naquele estado.
Maldita ressaca.
- Tinha de ser! Não podia faltar a inundação de vomitado na minha casa de banho!
- Acho que é minha também. Afinal foi tudo pago... pelos dois. – o meu estômago pregou-me a sua última partida, bem em cima dos sapatos de Phoebe.
Não é agradável ser esbofeteado depois de se ter estado a vomitar, mas ela não me deu tempo para reagir. Voltou-me as costas e saiu da casa de banho, deixando marcas húmidas na alcatifa da sala. O que foi que bebera, afinal?


Há lugares improváveis. Existem coisas impossíveis. Depois vem a realidade que desmente tudo isto.
O nosso mundo não fazia qualquer sentido, mas existia. Era uma colagem improvável de épocas antagónicas, tudo ligado pelos ténues fios de seda da insanidade. Nada precisava de ter nexo, bastava que existisse ou fosse imaginado pela mente de alguém para logo passar a fazer parte da realidade. Não estou a dizer que não sou louco: também tenho um Plymouth de 1956, um corte de cabelo de 2011 e preconceitos do longínquo ano de 1833. Isto além da minha casa, réplica de uma construção de um qualquer arquitecto famoso do início do século XX, entalada entre uma mansão de estilo Tudor e uma típica casa de montanha dos Alpes suíços. Não faz sentido, pois não?
Sempre que me embebedo fico com tendência para filosofar. Fui procurar Phoebe depois de me lavar, usando apenas um roupão de seda com motivos estranhamente estúpidos.
Estava no quarto, estirada na cama do século XVIII, fingindo que chorava. Phoebe nunca chorava.
- Nunca mais bebo nada, nem sequer água. Hás-de ver-me definhar, Phoebe, e nada do que então tentares me demoverá. Mas podes salvar-me do meu trágico destino agora, se me deres um beijo.
Phoebe nunca fazia nada. Só fingia.

Greenaway olhou novamente para o espelho retrovisor. Sim, era mesmo uma pequena mancha de ferrugem! Teria de levar o carro ao restaurador o quanto antes. Custara-lhe caro aquele modelo, não podia deixar que a ferrugem o tomasse de assalto.
As manhãs eram sempre dolorosas. Um dia, quando uma curva surgisse, ele estaria de olhos fechados, no país dos sonhos, e essa curva seria a última.
Ser polícia num mundo de loucos tinha vantagens e desvantagens. O principal obstáculo era a lei: mudava ao sabor da moda e, se três meses antes, durante uma semana, vigorara a lei islâmica do fim do século XX (felizmente estava de férias nessa altura), e no mês anterior existira um avançado e liberal sistema de leis da antiga colónia de Kihyl, o normal era a miscigenação de várias épocas e sistemas, numa barafunda tal que só com o auxílio do sistema central de aplicação da justiça se conseguia aplicar a lei.
Quando era garoto sempre gostara de subir às árvores. Partira vários ossos nessas brincadeiras mas voltara sempre a tentar. Àquela árvore que surgira à minha frente não me apetecia trepar, principalmente dentro do meu automóvel.
O som da chapa rasgada pela árvore e a ausência de impacto fez-me perceber duas coisas naqueles ténues instantes: tinha escapado a um choque frontal com uma árvore de respeito e o meu carro sofrera bastante com tudo aquilo. Após um slalom atrapalhado pela ribanceira abaixo o automóvel estacou, mergulhado numa nuvem de poeira. Tinha de passar a deitar-me mais cedo.

Sentiu a ausência e abriu os olhos. Phoebe já não estava ao seu lado. Levantou-se a custo e olhou para o relógio suíço na parede: era tarde. Ela entrou nesse momento, nua, ainda com gotas a pingarem da pele dourada.
- Sabes de uma coisa engraçada...
"-... esta é do século XXI, ano de 2036, e subiu ao Top10 mundial no dia dez de Agosto desse ano. "Take a little" pelos..."
Olhou para a mão ensanguentada e percebeu que fizera um corte na testa. Mão ensanguentada!? Que raio...
Viu o corte no espelho interior: nada importante, o automóvel preocupava-o mais. Isso e o atraso. O sujeito que tinha de vigiar não estaria à sua espera. Vigiar? Mas eu não tenho de vigiar ninguém! Vi a minha mão abrir a porta e saí do carro. Olhando para cima agora, a ribanceira não lhe parecia tão imponente. Um momento! Desde quando é que tenho um anel com uma pedra amarela? Decidiu-se a subir e procurar ajuda. E fatos cinzentos com corte do fim do século XX? A meio da escalada limpou o suor da testa e do bigode. Eu não tenho bigode! Custara-lhe menos a descer...

Wilbur Teeling não ligou aos gritos de protesto do peão imprudente e continuou a acelerar pela avenida.
A cabeleira empoada descaiu-lhe novamente para o lado e tombou no chão.
- Merda de coisa! – abrandou e encostou o automóvel à berma. Custou-lhe dobrar-se para a apanhar, os seus 110 quilos não ajudavam.
Droga de acidente! Pelo menos não me magoara, embora me sentisse apertado. Levantei-me e olhei pelo pára-brisa. Onde é que estava a floresta? Ajeitou a cabeleira com cuidado e engatou novamente a primeira. Estava com fome, comera muito pouco uma hora antes. Eu não estou com fome! Parou junto a um restaurante chinês. Tinha mesmo muita fome.

Ela era muito bonita, a mulher mais bonita que eu já vira! Para mais estava nua e avançava na minha direcção. Ouvi-me dizer:
-...Não me lembro do que bebi ontem. Foi qualquer coisa nova que alguém trouxe mas não me recordo o quê! – eu ontem bebi sumo de laranja, recordo-me bem.
- Não foi sumo de laranja concerteza, foi algo bem forte para te pôr nesse estado. Serás sempre o mesmo, Elder Pramitt...
Esta dor de cabeça não é minha, raios! Eu ontem não bebi nada! Pramitt enlaçou Phoebe pela cintura e sussurrou-lhe ao ouvido: – Tu gostas de mim assim. – para dizer a verdade não percebo como ela gosta de mim, mas está a ser muito bom. Até me sinto mais leve!

Elder Pramitt não percebia porque estava novamente na cama com Phoebe.
Vincent Greenaway não se lembrava de ter subido a ribanceira.
Wilbur Teeling estava num restaurante chinês. Não percebeu como, mas a comida estava boa.

3.10.04

Contágio (III)

As luzes estavam apagadas, em casa de Henry Rose. Não quis acordá-lo e por isso abri a porta com o meu disruptor. Não deu trabalho algum.
Comecei a procurar Ilia pelos quartos, mas nenhum quarto continha Ilia.
- Maldito drogado, onde é que te meteste agora!
- Não te preocupes com Ilia, Eveready. Onde ele está agora nenhuma droga lhe fará mal.
O sorriso "sincero" continuava a adornar o rosto de Henry, mas eu apenas via traição a bailar-lhe nos olhos.
- Porquê, Henry?
- Porquê? Essa pergunta nem sequer tem razão de ser. Sou um mero empregado que tenta saber o que se passa e faz o que lhe mandam. Não mais que isso, Ever, os porquês não me interessam.
- Já ouvi essa história de uma outra boca. Confesso que me enganaste, Henry. A mim e a todos: apenas um disfarce bem urdido. Também me vais matar a mim, Henry?
- Se não metesses o nariz onde não devias... Agora já cumpriste a tua missão, já não vales um chavo. Dá-me o swapper, Ever.
Comecei a apalpar os bolsos. Grande suíno! Descobri uma coisa pesada e que não me era familiar. Era uma bíblia de alto calibre, o meu caminho para a salvação.
- Toma Henry, toma o teu querido swapper.
No clarão fugaz do disparo só vi os olhos de Henry: não pareciam os olhos de um espião...
Eu tinha perguntas para lhe fazer, mas iria obter respostas? Henry jazia deitado na carpete que fora azul e era agora vermelha.
- Tu... tu nunca trouxeste... armas contigo, Ever...
- Existem hábitos que se perdem. Conta-me Henry: quem está por trás de tudo isto? Melhor ainda: o que é tudo isto?
- Lembras-te da epidemia de 56? – a voz dele tornava-se cada vez mais fraca. – ...Tu és pior que ela...
Ficou a olhar para mim, um olhar inocente apoiado num sorriso sincero. Não compreendia o sentido da sua última frase e dela dependia a minha vida.
A chave de tudo estava na sabotagem do swapper, mas quem o reprogramara? Precisava de um refúgio seguro e só me surgia na mente a loja de Martie Kirkegard.

- São sete crons. Ah, plasticard! – o vendedor de comida meteu o cartão na máquina. Depois voltou-se para mim.
- Este plasticard não presta. Não paga. Dinheiro para mim.
O maldito chinês estaria a enganar-me?
- Não presta, paga em dinheiro ou chamo a polícia!
Agarrei-o pela gola e puxei-o por cima do balcão.
- Ouve bem chinês fedorento: a polícia nunca se chama, aqui. Toma os teus sete fedorentos crons.
Maldita HigherTec! Eles não me podiam fazer aquilo. Ou podiam? Quem faria justiça, se é que ela tinha alguma coisa a ver com isto?
Na rua sete as pessoas apinhavam-se diante dos aparelhos de televisão que transmitiam as notícias de uma das estações locais.
- "...e com estes números elevam-se já a mil e duzentas as vítimas mortais deste estranho caso. O único factor comum às vítimas era o uso mais que regular do swapper. Outro facto estranho foi o de que as vítimas morreram todas durante..."
- Eveready! Não devias estar aqui!
Joe Sarnento Roscoe: um dos maiores chatos que conhecera em toda a minha vida.
- Eles andam atrás de ti, Eveready, toma cuidado!
- Quem é que anda atrás de mim?
- Todos: a polícia, os vigilantes, e uns tipos sem farda que não sei quem são. Parecem ser os mais perigosos.
- "...A HigherTec e a Ultra-Vision negaram peremptoriamente a teoria segundo a qual os acontecimentos se devem a defeitos no produtor de impulsos neurónicos. O Professor Nguyen Kindsey..."
Por vezes os chatos também são úteis.

Nunca serei novamente um homem, mas será que o quero ser? O que é um homem? Valerá a pena ser um homem? O que fizeram os homens de bom, além do pó?
Tenho saudades de quê? Da ausência de vícios, dos meus dentes brancos? Bah... Aparências.
Será da família, será da sua ausência? Eles nunca me apoiaram... Fugiram para Portville e deixaram-me só. Que interessa isso também. Só davam trabalho.
Os dias parecem-me mais curtos, cada vez mais curtos. Tenho medo que desapareçam. Os outros fingem não notar, fingem que tudo está bem, mas eu vejo-os minguar, e ao nascer do sol quase se sucede o seu ocaso... Não vêem isso, imbecis convencidos?
Bem, eu também não tenho a certeza. Pode ser apenas o meu cérebro que encolhe, e com ele vão os meus dias.
Já notaram que os dias estão a encolher? Não, esperem! Já falei disto não falei? Desculpem-me..
Ontem fui passear. Sim, isto é mesmo verdade, mas não sei se foi mesmo ontem.
Fui até ao meu magnífico terraço, atulhado de lixo antigo. Apesar disso, é um bom sítio para se estar.
Conhecem o meu terraço? Não é muito grande, apesar de ser enorme. O tamanho varia conforme a dose que tomei antes. É um bom terraço, o meu. Já conhecem o meu terraço?

"Monólogo de um Mastigador de Pó" - Christopher Pilgrim

Foi difícil chegar à loja de Martie. Os polícias pareciam ter-se multiplicado e eu era agora um homem muito procurado.
Martie escondeu-me nas traseiras, mas disse-me que era só por uma noite. Acho que apanhei a peste...
- Martie, emprestas-me o teu swapper? Não posso utilizar este.
- Vou buscá-lo.
Martie tinha medo. Não o censurava por isso, eu podia estragar-lhe o negócio.
- Dá-me esse swapper assassino, quero estudá-lo melhor. Eu sei que já vi padrões parecidos com os que ele produz.
Dei-lhe o aparelho que matara Lars e fiquei com o dele. Programei-o para uma sessão curta, para me acalmar os nervos. Martie desaparecera no seu laboratório-oficina-habitação.
Sentia-me melhor, bem melhor. Cada vez estou mais convencido que são os excessos que estragam tudo. Se o soubéssemos utilizar com método, o swapper podia ser útil. Martie estava junto de mim, muito agitado, uma agitação quase febril.
- Descobri uma coisa, Gerd. Uma coisa muito importante. Vem comigo que eu explico-te.
Deteve-se na bancada que eu já vira antes, quando ali estivera no dia anterior.
- Vê esta gravação Eveready. – olhei para o monitor. Vi os padrões que se remexiam no écran.
- Isto, Ever, era um pesadelo. Um pesadelo vulgar, daqueles que todos temos uma vez por outra. Agora vou ligar o teu swapper. Vê bem.
No monitor as cores pareciam querer saltar sobre nós e invadir o mundo. Depois Martie colocou os dois padrões no monitor simultaneamente. Eram muito parecidos.
- O que é que vês, Gerd?
- São semelhantes. Até bastante parecidos. Diria que eram idênticos se não fosse...
-...Se não fosse a terrível agitação do padrão proveniente do teu swapper, não é?
- Sim, acho que é isso. – Martie quase saltava, de tão nervoso estar com tudo aquilo. Estava à beira de uma crise.
- Não percebes Ever? – tirou um saco que se encontrava debaixo da bancada e meteu na boca uma boa mão cheia de pó. – Aquilo que matou Lars foi um pesadelo, um terrível pesadelo. Ele morreu de medo... Dá-me o meu swapper, o pó não chega, estou muito nervoso, vou para meu o quarto.
Eu não disse nada. Que podia eu dizer, que tudo aquilo parecia o sonho de um louco? Lembrei-me da luz vermelha do aparelho, da luz de avaria, que se acendera antes da minha sessão. Mas eu não morrera!
- Os padrões variam de intensidade Gerd. Pode não matar à primeira. – a voz dele surgiu do quarto entaramelada pelos efeitos do pó e parecia ter lido os meus pensamentos. Decidi deitar-me, não podia fazer mais nada.

Já seria manhã? Lá fora, no beco esconso das traseiras, não divisei a luz tímida dos dias. Algo me acordara. O grito abafado fez-me levantar de um salto.
- Martie!
A cabeça estava já completamente ensanguentada, mas ele continuava a bater com ela na parede, uma e outra vez, os braços balouçando com a fúria, como se estivessem quebrados.
- Martie, pára! – Tentei segurá-lo mas o corpo franzino parecia dotado de uma força sobre-humana. A força do medo, pensei.
Consegui agarrá-lo pela cintura mas, nesse preciso instante, o corpo tornou-se inerte.
- Martie, fala comigo Martie!!
Martie não falaria com mais ninguém...

O dia estava cinzento, como todos aliás, e a minha disposição ainda lhe realçava a cor parda.
Quantos morreriam mais?
A peça chave, a que juntou todos os pedaços dispersos e incompreensíveis, só a tivera na mão na noite anterior. Surgira-me clara da morte horrível de Martie, iluminando a noite. Na minha cabeça uma palavra mantinha-se acima de todas as outras: genocídio!
Era agora claro que ninguém mexera no nosso swapper, nem no de Martie. Ou melhor, a única pessoa a tocar-lhe e a usá-lo fora eu! Gerd Makint, sabotador de swappers, assassino involuntário de inúmeras pessoas. Um novo chip de controlo... Uma grande mentira, fora apenas isso. Eles tinham-me tornado contagioso, de uma maneira que eu ainda não conseguira perceber: a minha implantação parecia reprogramar os swappers e torná-los mortais para os outros, mas eu nada sofria. O veículo de transporte da epidemia não podia morrer e esse veículo era eu. Mas tornara-me incómodo, tornara-me um alvo a abater.
Depois de ter morto tantas pessoas involuntariamente, apetecia-me matar algumas de livre vontade, mas para alcançar o meu objectivo tinha de sair da cidade inferior e isso não era fácil. Façam o que quiserem na vossa pocilga, mas nunca saiam dela...
Do sítio onde me encontrava ainda via o vulto, mas as letras não se viam dali. O edifício mergulhava nas nuvens baixas, parecendo alcançar o céu. Pelo inferno que tinha criado, a HigherTec havia de pagar.

[...] e o problema do homem tornara-se cada vez maior. Ninguém lhe atribuíra tamanha responsabilidade, mas ele sentia ser sua obrigação, seu dever, tomá-la entre mãos e levar tudo a bom termo.
Fora sempre um funcionário apagado, perdido entre as mil coisas que tinha de fazer em tempo algum. Poucas esperanças lhe restavam agora de fazer uma coisa que o distinguisse entre todos.
Trabalhou muito e fez muitos sacrifícios. Privou a família da sua companhia e de outras coisas mais materiais, mas o objectivo estava quase alcançado, o triunfo estava perto!
Era o grande dia! O seu rosto era o rosto do cansaço, mas por dentro sentia-se iluminado por uma nova força. Foi então que o esforço pediu contas e o coração não lhe pôde pagar... Caiu fulminado no chão do corredor e viu a glória fugir ao mesmo tempo que a vida. O chefe gostou muito do seu trabalho e ficou também com o mérito. O sentido do dever matou o sentido da vida há muito tempo...

"Monkey Business and Other Stories" - Thomas Nachtflug

Encontrarei alguma vez os culpados? O gigantesco complexo erguia-se mesmo diante de mim. Conseguira sair da cidade inferior à custa de umas quantas cabeças partidas e da roupa pedida emprestada a um vigilante azul.
O mais sujo está mais acima: ali na HigherTec essa máxima parecia verdadeira, e tornava a minha tarefa mais difícil. Arranjei uma pasta na casa de banho. Não sei quanto tempo o dono levaria a abrir a fechadura que eu encravara. Não me vira e isso era essencial.
- Alto! Identifique-se!
Mostrei-lhe o cartão falso que Rudie me arranjara. Rudie Kol era o melhor falsificador da cidade inferior e devia-me vários favores; fornecera-me o cartão alterado em duas horas.
- Tenho de entregar estes documentos na administração. – mostrei-lhe a pasta. Ele olhou mais uma vez para o cartão e deixou-me entrar no elevador expresso.
O corredor estava como eu me recordava dele, da outra vez em que ali estivera: paranóicamente limpo. A limpeza não era a única coisa paranóica por ali. Comecei a ler os nomes nas portas, tentando encontrar um conhecido.
"Lésinne Huyitt – Directora de Operações Especiais", dizia a pequena placa na porta. Eu fora uma operação especial... Não bati quando entrei.
Ela estava sentada na secretária, voltada para a porta, e tinha uma arma apontada a mim.
- Eveready! Você conseguiu chegar aqui, parabéns.
- Como ?!?...
- Como sabia que vinha aí, é isso que quer saber? O corredor tem câmaras, senhor Gerd Makint... Por pouco não me apanhava aqui. Sabe que são horas de almoço, não sabe?
- Ainda me deve um almoço, lembra-se?
- É pena, porque não terei oportunidade de lho oferecer. A sua vida está muito próxima do fim...
- Se vou morrer, ao menos diga-me porquê.
- O último pedido do condenado à morte... Se tivesse ficado quieto ainda agora estaria a chafurdar na cidade inferior, feliz da vida. Mas está bem, vou-lhe contar. A ideia não foi minha, foi dos patrões, aqueles que nunca se vêem. Decidiram que o mundo estava decadente e que era necessário fazer algo. Eliminar os decadentes pareceu-lhes uma boa ideia.
- Foram vocês que tornaram o mundo assim.
- Não me interrompa! Era preciso arquitectar uma maneira limpa e que não incriminasse de maneira nenhuma a companhia. Quer algo mais limpo que um vírus electrónico? Foi isso que lhe implantámos, Gerd; um chip que infectava todos os swappers que você utilizasse. Os mais viciados, os mais decadentes, seriam fulminados; os outros aguentar-se-iam mais um tempo.
- Agora já sou dispensável...
Ela soltou uma gargalhada.
- Meu caro Gerd, você foi sempre dispensável! Por acaso pensava que só a sua implantação foi alterada? Existem centenas como você, em todo o mundo. Será uma epidemia fulminante e o mundo ficará mais limpo. – ela baixara a arma na descontracção da conversa.
- Sim, ficará mais limpo...
Não teve tempo de gritar. O rosto lindo estava crispado pela dor e os cabelos louros tinham manchas de sangue. Ela olhou para mim.
- É pena, Lésinne Huyitt, podíamos ter sido amantes... – antes de sair atirei para cima do corpo um plasticard de nível médio e dez crons em moedas.
- Adeus Lési.
Aquele não fora apenas mais um engate...
Dirigi-me para o terraço do edifício e corri para um dos aerocarros estacionados. Liguei o piloto automático e desliguei o rádio-controlo para evitar interferências. Quando saísse para uma zona com menos tráfego conduzi-lo-ia eu.
Neste mundo o futuro é sempre sombrio e a esperança parece ter morrido numa das muitas guerras que se travaram antes do Tratado do Mundo Comum.
Atravessei a última camada de nuvens baixas e vi-me num outro mundo.
Aqui, onde o sol ainda brilha com alguma dignidade, tudo parece ter solução, e a cidade lá em baixo, oculta pelas nuvens negras, parece pertencer a outra dimensão.
No monitor da traseira três sombras negras transformaram-se em aerocarros da polícia.
Desliguei o piloto automático e tomei os controlos nas minhas mãos.
FIM