Impérios de Vento - 1ª Parte: Chuva - Um e Meio
O pai trouxera a notícia: a fábrica ia fechar. Em apenas algumas semanas passaram do bairro modesto mas limpo em que sempre tinham vivido para uma das piores partes da cidade. Depois o pai adoecera e o irmão mais velho fora morto numa rixa de rua. A mãe ainda durara mais alguns anos, morrera tinha ele dezassete. Desde então tomara conta de si, melhor ou pior: agora que podia contabilizar todos esses anos da sua vida inclinava-se para a segunda hipótese. Cometera demasiados erros, acumulara demasiado ódio e agora parecia tarde demais para enveredar por outro caminho. Hellmut Hauser suspirou e decidiu afastar todos aqueles pensamentos da sua cabeça.
- Olá! O meu nome é MacArthur Parker. Também o raptaram? – a presença do estranho surpreendera Hellmut, não o sentira antes. Raptado, dissera ele? O que é que isso tinha a ver com... Hellmut Hauser começou a pensar, coisa que não parecia ter sucedido nos últimos tempos. Recordava-se de ter saído do bar de Arnie, mas depois disso era o vazio total. Tentou levantar-se mas não conseguiu. Só então se apercebeu da ausência de sensações, pelo menos das que estava habituado a sentir. Tudo o que parecia rodeá-lo era muito estranho e o desconhecido sempre lhe causara medo.
- A mim costuma causar-me perplexidade. – Hellmut sentiu-se desorientado. Será que pensara em voz alta? Quem seria o estranho?
- Eu também me sinto um pouco desorientado embora esteja por aqui há mais tempo que você. Já lhe tinha dito o meu nome, MacArthur Parker, vadio inveterado da Terra e das Colónias. À primeira pergunta que fez (ou pensou) não lhe sei responder, também me encontro no mesmo limbo que você. Ainda não me disse o seu nome.
Hellmut penetrou na longa espiral do pânico e tentou gritar.
- Cale-se homem, você não está a dizer coisa com coisa e está a pôr-me doido também! – Hellmut já não o escutou. Antes de perder a consciência MacArthur Parker ouviu a voz que já lhe era familiar.
"Teste 32 abortado. Iniciar sequência de..."
O seu estado consciente era constituído por uma série de janelas sem qualquer ligação. Algumas das vezes tinha visão e audição normais, noutras vagueava num limbo simultaneamente negro e luminoso. Entre a visão do que parecia ser um quarto asséptico (ainda não se movimentava o suficiente para confirmar essa impressão) e a escuridão pejada de luz estava o seu mundo. A estranha presença balbuciante surgira numa dessas ocasiões, um ser confuso e inseguro que lhe lançara torrentes desconexas de objectos sem valor semântico para o interior do seu cérebro. A sua calma proverbial não o abandonara mas sentia-se modificado a um nível muito básico. Porque razão estaria a pensar daquele modo? Nas raízes dos seus raciocínios qualquer coisa se modificara insinuosa e suavemente. Só agora se denunciara através da estrutura dos seus pensamentos e mesmo assim não percebera nada do que lhe acontecera. Estaria louco? Um clarão de luz parou-lhe os pensamentos e por alguns instantes viu o quarto iluminado pela luz branca e fria de hospital. Ou de laboratório, pensou.
"Desliga outra vez, estes padrões não estão..."
Ruído branco. Todo o espectro do seu pensamento se subjugara à terrível interferência. Quando julgava que o seu cérebro iria estoirar o ruído cessou. Era uma cena calma e bucólica a que só faltava um pastor com ovelhas para dar o tom anacrónico final à paisagem campestre que divisava. Verde até perder de vista!
Sentiu-se em movimento; estava numa cadeira de rodas! Olhou para o pequeno maciço de árvores à distância de algumas dezenas de metros de si. Trinta vírgula trinta e quatro, para ser mais preciso. Quando o maciço surgiu ampliado no seu campo de visão Hellmut Hauser iniciou o processo que o levaria ao pânico total.
- Acalme-se homem, eu também estou surpreendido com o que fez mas não é necessário entrar em pânico! Ainda o desligam e o levam novamente para a revisão.
- Quem é você?
- Pela terceira vez: o meu nome é MacArthur Parker e estou aqui para o ajudar. Quer dizer-me agora o seu nome?
- Hell... Hellmut Hauser. – balbuciou.
- Pois bem, Hellmut, há certas coisas que é necessário que eu lhe conte. Sabe, o meu processo foi menos chocante para mim que o seu e já me permitiram saber de certas coisas. Acalme-se e eu conto-lhe, mas prepare-se desde já para alguns grandes choques.
Hellmut Hauser manteve-se calado durante muito tempo. Calado era uma força de expressão, agora que não possuía corpo. Os seus pensamentos só a muito custo eram só seus; toda aquela torrente de pequenas coisas de que é composto o raciocínio era partilhada com o outro. "Não pense em mim desse modo, não somos dois seres. Nem um, vendo bem..."
Hauser tentou pensar só para si, contabilizar as perdas e os ganhos, se é que havia alguns. Afinal aquela aposta fora ganha, no fim acabara por morrer mesmo, mas de uma forma muito estranha. Toda a sua existência se resumia a um reduzido e extremamente complexo circuito integrado. Não era um circuito vulgar, arseniato de gálio e silício desenhando linhas sinuosas e superfícies com elaborados desenhos geométricos nelas impressos. Era uma coisa superior, com partes que se podiam considerar orgânicas se as olhássemos ao nível do material de que eram compostas, e interfaces não visíveis entre o cérebro do seu hospedeiro e o mais íntimo do que restava de si. Via tudo o que era agora até ao mais insignificante pormenor. Perdera muitas das coisas que a vida tinha de bom mas nunca mais teria os terríveis pesadelos que o atormentavam, nem faria aquelas coisas novamente. Perdas e ganhos... Podia realizar coisas que nem nas sessões mais loucas no thinkbar imaginara. Perdera a visão, a audição, todos os outros sentidos e sensações, e ganhara um único sentido, sinérgico de todos os anteriores. É claro que podia utilizar os sentidos de MacArthur Parker individualmente e experimentar as suas sensações, mas também era verdade que ele podia bloqueá-lo e confundi-lo. Era uma espécie de anjo da guarda. "Nunca fui santo", ripostou MacArthur dentro de si. Perdas ou ganhos?
Parker apoiou-se à bengala que ainda utilizava por se sentir fraco, uma fraqueza interior que Hellmut ajudava a ultrapassar.
- É a tua vez, Mac.
- Bispo, C5 para E7.
- Quer dizer que ela não era mais que um isco para te pescar?
- Sim, – confirmou MacArthur – um isco muito atraente. Não é ela que vem ali?
Ali era uma grande distância. MacArthur Parker não obrigou nem pediu a Hellmut Hauser para ampliar a imagem, isso não era necessário. Sue DeLonghi apenas apareceu num grande plano a Parker. Não deixou de a ver ao longe, a imagem processada por Hellmut era uma espécie de segundo plano, um processo subjacente à imagem real.
- Um belo isco. – sim, Hellmut nunca a tinha visto em pessoa, apenas as imagens e recordações que Mac guardava da viagem a bordo do Eastbourn – Porque é que nos escolheram a nós, Mac?
- Ouvi qualquer coisa sobre o rastreio de mutações. Ao que parece não tentam detectar só degenerescências, analisam muitas outras coisas. Quando quiseram alguém com as nossas características só lhes foi necessário consultar a base de dados do centro de rastreio. Fomos escolhidos quase ao acaso, por isso não te tenhas em grande conta. Não és nenhum génio, Hellmut.
O isco aproximara-se e saudara-os com um aceno. Haviam sido muito subtis na forma como o tinham caçado. Com Hellmut fora tudo um pouco mais rude. Afinal eles não tinham precisado do corpo dele...
- Olá Mac, olá Hellmut. Estão mais fortes hoje?
Nem um nem outro lhe responderam: Hellmut porque não podia, Mac porque não o quis fazer.
- Já nos pode contar o que pretendem de nós? – a pergunta fora feita pelos dois.
- Oh, Mac!... Porque me trata tão friamente quando até já fomos amantes? – o granizo que principiou a cair interrompeu a conversa na altura ideal. Mac já pensava em como lhe acertar com a bengala de plástico.
Caminharam os três para dentro, Sue auxiliando Mac, fugindo às pedras de gelo que os fustigavam sem cessar.
- Que dia é hoje? – perguntou Mac.
- Um dia qualquer de Agosto. – respondeu Sue enquanto o sentava no sofá junto à lareira. Até o tempo lhes haviam roubado, pensou Hellmut. Uma coisa que era mais que calor confortou todo o seu... o seu... – o que era ele agora? – toda a sua essência. Sim, essência era um bom termo. Devia ser a sua essência a única coisa que repousava agora no diminuto chip alojado no cérebro de Parker.
- Torre, D1 para D5, xeque-mate! Perdeste Hellmut, deves-me uma cerveja.
Não lhes tinham contado nada. Não conheciam os objectivos deles, fossem eles quem fossem, embora a MacArthur sempre lhe tivesse parecido tudo muito oficial. Provavelmente a Administração estaria por trás de tudo aquilo. Mac entrou na pequena cápsula para se sujeitarem a mais um teste. Desde a sua recuperação (física a dele, psicológica a de Hellmut), tinham sido sujeitos a tantos e tão variados testes que Mac já lhes perdera a conta.
- O que pensas que nos vão fazer agora?
- Não faço ideia mas esta cápsula sugere um teste de velocidade, ou pressão, ou...
Nunca dera demasiada atenção ao assunto: para ele, se se mexia, estava vivo. Só as novas condições da sua existência o levaram a rever os seus conceitos de "ser vivo" e a questionar-se sobre o verdadeiro significado da expressão "estar vivo".
Hellmut Hauser não tinha dúvidas de que estava vivo, no entanto não se conseguia incluir em nenhum grupo de seres viventes. Era uma entidade viva mas não possuía muitas das características que nos habituámos a relacionar com a vida. Ou então era uma simulação muito bem feita... Hellmut afastou a ideia, estava a ficar paranóico.
Ainda não se conseguia imaginar como um conjunto de circuitos alojado junto ao cérebro de MacArthur Parker e isso continuava a confundi-lo. Continuava a ver-se como uma pessoa, com pernas e braços e cabeça e cérebro... Existem coisas que podem ser remediadas e em que se atinge um novo estado de equilíbrio, mas o que lhe acontecera estava para lá de qualquer remédio.
Debilmente tentou fazer-se ouvir. Quando o silêncio avassalador ocultou a sua voz ele desfez-se em desespero. Procurou em vão a saída do labirinto, mas a cada tentativa ficava mais enleado na trama de finos fios de nada. O ar diluiu-se nas sombras e ele sentiu os pulmões vazios pedirem por ele. Quando já nada esperava senão o vazio calmo da morte todo o cenário se estilhaçou como um vidro atingido por uma pedra. Ouviu o seu grito e levantou-se de um salto: estava ensopado em suor e tremia de medo. Abriu a diminuta janela de par em par e olhou a pequena baía mergulhada na luz cinzenta do início da madrugada. As casas amontoavam-se pela encosta quase até ao mar e o pequeno porto já fervilhava de actividade apesar da hora matinal.
Deixou que o ar fresco o acariciasse e levasse com ele os últimos vestígios daquele sonho mau. Não existe efeito sem causa, pensou. Algo o ameaçava, qualquer coisa mais perigosa do que tudo o que tinha enfrentado até agora. Havia gente que não gostava dele. Estava na hora de abandonar a pacata cidade de Kacira e procurar outro refúgio.